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A estratégia de ajuste fiscal adotada pelo governo do Presidente Temer baseia-se em dois pressupostos. O primeiro é que a crise fiscal vivenciada pelo Brasil a partir de 2014 é de natureza estrutural, resultado do crescimento dos gastos primários da União a um ritmo superior ao PIB ao longo dos últimos 15 anos. Essa trajetória dos gastos primários era claramente insustentável, tendo que desaguar, mais cedo ou mais tarde, numa crise fiscal; uma vez que é econômica e politicamente inconcebível que a carga tributária cresça continuamente ao longo do tempo de forma a permitir a geração de um superávit primário na magnitude necessária para manter a dívida pública estável como proporção do PIB.  A recuperação cíclica da economia – previsto para 2017 – não vai, portanto, eliminar o problema estrutural. Nesse contexto, o ajuste fiscal deve passar necessariamente pela contenção do ritmo de crescimento das despesas primárias da União, de forma a interromper o crescimento da relação despesas primárias/PIB.

O segundo pressuposto é que em função da recessão e das “restrições constitucionais” que impedem a redução das despesas obrigatórias em termos nominais; ajuste fiscal tem que ser feito de maneira gradual, inexistindo a possibilidade de uma “virada” fiscal como foi tentado, sem sucesso, pelo Ministro Levy em 2015. Nesse contexto, a recuperação do nível de atividade econômica levará a um aumento gradual da arrecadação tributária como proporção do PIB, sem a necessidade de uma nova rodada de aumento de impostos. Pelo lado das despesas primárias, deve-se fazer com que as mesmas cresçam a um ritmo menor do que a expansão do PIB de forma que a relação despesas primárias/PIB se reduza gradualmente. Essa estratégia deverá fazer com que no espaço de 5 ou 6 anos a União volte a gerar o superávit primário necessário para a estabilização e posterior redução da relação dívida pública/PIB.

Esse diagnóstico está, na sua essência, correto. O problema ou o diabo, como diria Nelson Rodrigues, está nos detalhes. Mais precisamente, nos detalhes operacionais da proposta de ajuste fiscal do governo. 

Para atingir esses objetivos, o governo Temer formulou a PEC 241 que limita o crescimento anual da despesa primária da União à variação observada do IPCA do ano anterior por um prazo de 20 anos. Dessa forma, as despesas primárias serão mantidas constantes em termos reais, assim que a inflação convergir para o centro da meta de 4,5% a.a. Como essa convergência deverá estar concluída apenas em 2018, segue-se que nos próximos dois anos ainda haverá um aumento das despesas primárias em termos reais, ou seja, o impulso fiscal ainda será positivo. Daqui se segue que não passa de demagogia barata a tese defendida por alguns setores da esquerda, apoiada por alguns economistas heterodoxos ligados ao “keynesianismo vulgar”, de que a PEC 241 produz um “austericídio fiscal”. No curto-prazo o teto de gastos previsto pela PEC 241 ainda dá margem para uma (modesta) expansão fiscal.

Assim que a economia brasileira retomar a sua trajetória de crescimento, a aprovação da PEC 241 levará a uma redução gradual da despesa primária como proporção do PIB, permitindo assim a recuperação gradual da capacidade de geração de superávit primário. Dessa forma, em algum momento nos próximos 5 ou 6 anos a União estará gerando o resultado primário suficiente para estabilizar e, posteriormente, reduzir a dívida pública como proporção do PIB. Esse momento poderá ser antecipado ou retardado por conta da trajetória futura da taxa de juros. Quanto menor for a taxa real de juros menor será o superávit primário requerido para estabilizar/reduzir a dívida pública/PIB; fazendo com que os efeitos da PEC 241 sobre a trajetória de consolidação fiscal se façam sentir mais cedo.

O primeira problema com a PEC 241 é que ao propor o congelamento dos gastos primários em termos reais, ela termina por gerar uma trajetória na qual os gastos primários da União se reduzem em termos per-capita. Com efeito, a população brasileira cresce, atualmente, ao ritmo de 0.8% a.a. Dessa forma, se os gastos primários permanecerem constantes em termos reais então como proporção ao número de habitantes eles estarão se reduzindo ao ritmo de 0.8% a.a. Como entre as despesas primárias encontram-se as rubricas de saúde e educação, não é preciso ser um gênio político para perceber que no médio e longo-prazo isso deverá produzir uma enorme insatisfação popular, principalmente nas camadas mais pobres da população.

Outro problema é  que a PEC 241 não prevê nenhuma “cláusula de escape”, ou seja, um dispositivo que permita a União descumprir temporariamente o teto do gasto no caso de “catástrofes naturais” (exemplo: a queda de um meteoro em Brasília) ou de ocorrência de uma crise bancária sistêmica que obrigue o governo a fazer o resgate dos bancos para impedir um colapso financeiro e, por conseguinte, uma queda catastrófica do PIB. Esse tipo de dispositivo é adotado por outros países que possuem um teto para o crescimento das despesas correntes como, por exemplo, o Peru (Ver Valor Econômico, “Controle de despesa foi bem sucedido em outros países”, 13/10/2016).

Uma alternativa politicamente mais palatável seria limitar o crescimento dos gastos primários da União à soma entre inflação do ano anterior e o crescimento da população de forma a manter os gastos primários constantes em termos per-capita; acrescentando cláusulas de escape para tratar das eventualidades descritas acima. Essa regra permitirá a redução da despesa primária/PIB a um ritmo menor do que o previsto na PEC 241; mas terá menos efeitos colaterais em termos políticos e sociais, proporcionando também a flexibilidade fiscal necessária para se lidar com “eventos inesperados” cuja neutralização exija uma forte, embora temporária, expansão fiscal.

Por fim, o período de revisão do indexador da despesa primária deveria ser reduzido de 10 para 4 anos para permitir que os governos democraticamente eleitos no futuro possam alterar, se assim o desejarem, o indexador para o teto da dívida. Trata-se de uma sistemática adotada pela França, onde o teto para o crescimento da despesa primária é definido em planos plurianuais revistos a intervalos de 4 anos. Adotar uma regra fiscal que prevê uma queda contínua da despesa primária como proporção do PIB por uma período de 20 anos (algo que nenhum país do mundo jamais adotou, ou seja, trata-se de outra jabuticaba) é impor a forceps uma visão minimalista a respeito do tamanho do Estado sobre a sociedade brasileira. Nesse contexto não podemos esquecer a advertência de W. Buitter (2003) “The [fiscal] rule should not prejudge the issue of the appropriate/optimal size of the public sector”.

O tamanho do Estado é assunto para ser tratado nas urnas, e não em jantares reservados em Brasília.

Referências

Buitter, W. (2003). “Ten commandments for a fiscal rule in the E(M)U”. Oxford review of economic policy, 19, 1, 84-99.