José Luis Oreiro*
Helder Lara Ferreira Filho**
Desde meados de 2014, a Dívida Bruta do Governo Geral como proporção do Produto Interno Bruto (DBGG/PIB) entrou em trajetória ascendente, notadamente por conta da ampliação da diferença entre a taxa real de juros incidente sobre a dívida e a taxa de crescimento da economia, além da deterioração do resultado primário. Para o ano de 2019, considerando uma taxa real de juros de 4%, um crescimento da economia de 1,5% e um déficit primário de 1,5% do PIB, a DBGG cresceria quase 3,5 p.p. – passando de 78% para 81,5% do PIB. Parte da deterioração do resultado primário observado desde 2014 decorreu do crescimento quase automático das despesas (obrigatórias) do governo e de uma queda expressiva nas receitas tributárias no período. Sendo assim, como as despesas previdenciárias compõem grande parte das despesas primárias do governo, isto já justificaria a necessidade de alguma reforma previdenciária. Isso sem mencionar a questão demográfica relacionada com o envelhecimento da população, resultado de uma queda relativamente rápida da taxa de natalidade e do o aumento na expectativa de vida dos brasileiros. Entretanto, mais do que discutir a necessidade de uma reforma, é necessário descer a fundo, nos detalhes de cada proposta, pois o problema pode estar precisamente nesses detalhes.
Iremos discutir alguns dos pontos principais da Proposta de Reforma da Previdência que foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), principalmente aqueles mais controversos. Nesse contexto, vale destacar as seguintes alterações propostas com relação as regras atualmente vigentes: (i) a idade mínima de 62 e 65 anos para mulheres e homens (62/65), respectivamente, com tempo de contribuição mínimo de 20 anos, não havendo mais possibilidade de aposentadoria apenas por tempo de contribuição; (ii) o benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) seria dado por 60% + 2% a cada ano a mais de contribuição além dos 20 anos mínimos multiplicado pela média de 100% das contribuições; (iii) a aposentadoria rural passaria de 55/60 e 15 anos de contribuição para 60/60 e 20 anos de contribuição; (iv) o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para Deficientes e o de Idosos que hoje é de um Salário Mínimo (SM), sendo o de Idosos apenas a partir de 65 anos; é alterado na proposta para que mulheres e homens possam receber R$ 400,00 a partir de 60 anos e um SM a partir dos 70 anos; (v) a alteração das alíquotas efetivas de contribuição do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) segundo faixas salariais, de 7,5% (para um SM) até 22% para salários superiores ao teto Constitucional (R$ 39.000,00) para os Servidores que ingressaram no Regime Próprio antes de 2013 (quando houve a efetivação da Funpresp, o fundo complementar dos Servidores Públicos); (vi) a implantação do Sistema de Capitalização, que seria de livre escolha do trabalhador entre os sistemas, e seria definido por Lei Complementar; e (vii) a desconstitucionalização dos parâmetros da Previdência.
Sobre o ponto (i), deve-se observar que a idade mínima já existe em grande número de países, e dada a situação demográfica brasileira, também faz sentido para o caso do Brasil. Entretanto, o aumento do tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos impacta negativamente os mais pobres, por conta da sua dificuldade destes em atingir esse tempo, uma vez que transitam entre os setores formal e informal da economia, a depender do ciclo econômico e da oferta de empregos. Para se ter uma ideia, a mediana do tempo de contribuição dos mais pobres na aposentadoria por idade é de aproximadamente de 17 anos (20 para homens e 16 para mulheres). Na prática, essa medida poderia fazer com que esse grupo de pessoas seja empurrado compulsoriamente para o BPC, não mais se aposentando por idade – o que pode até reduzir o incentivo à contribuição previdenciária, no médio e no longo prazo. Portanto, acreditamos que deveria ser mantido o tempo mínimo de contribuição de 15 anos, ou algo mais próximo disso.
Sobre o ponto (ii), o cálculo de benefícios da Nova Previdência possui uma falha, detectada pelo matemático Márcio Carvalho, pois há situações em que um trabalhador poderia ter contribuído mais do que outro e, ainda assim, receberia um benefício previdenciário menor. Isto ocorreria por conta da consideração de todos os salários para fins de cálculo de benefício, somadas às outras regras, como o recebimento de 60% do valor médio de contribuição e 2 p.p. a mais a cada ano adicional de contribuição. Esse é um problema que pode ocorrer em determinadas circunstâncias inclusive no sistema atual; contudo, é algo que seria importante corrigir, aproveitando-se da reforma, para que haja um incentivo maior à contribuição.
Sobre (iii), a previdência rural, além da questão dos 20 anos de contribuição que já discutimos, temos o problema adicional de igualação da idade mínima para homens e mulheres. Se isto não foi feito no Regime Urbano, tampouco deveria ser feito para o Rural, por razões similares já discutidas. Isto não significa que nada deva ser feito no tocante à previdência rural, uma vez que seu déficit é crescente desde 2001, chegando a 1,65% do PIB em 2018, mais de 60% do déficit total do RGPS. A MP 871 procura aprimorar a gestão desse Regime, inclusive criando um cadastro acerca da atividade rural, além de propor regras mais objetivas para comprovação de tempo de atividade, inclusive para evitar a judicialização do tema (90% dos benefícios são concedidos na Justiça, com provas testemunhais, por vezes). Sobre o ponto (iv), as alterações parecem muito significativas, ainda mais se aplicada a nova idade mínima. Além disso, a economia em 10 anos com as mudanças no BPC é relativamente pequena (cerca de R$ 34 bilhões, segundo dados do governo). Dado o elevado custo político e social de tais alterações, bem como o impacto reduzido na economia, poderia ser pensado um valor superior aos R$ 400,00 para os 60 anos ou, no limite, manter a regra vigente inalterada.
Sobre o ponto (v), à primeira vista, parece uma promissora ideia, inclusive porque parece justa do ponto de vista atuarial ao tributar mais quem recebe salários superiores (muitos acima do teto constitucional, inclusive), e acabam recebendo maiores subsídios atuariais implícitos. Por exemplo, um servidor público que recebe R$ 20.000,00 e paga uma alíquota efetiva de 11% a título de contribuição previdenciária, passaria a pagar uma alíquota efetiva de 14,7%, aproximadamente, com a reforma. Os mais atingidos seriam aqueles que ganham acima do teto de R$ 39.000,00, tendo uma alíquota efetiva entre 16,79% e 22%. No entanto esse ponto da proposta possui dois problemas: o primeiro é que o sistema de alíquotas progressivas reduziria a progressividade do IRPF para esses servidores, uma vez que as alíquotas efetivas pagas pelo IRPF seriam reduzidas dado o maior desconto previdenciário. O segundo e mais relevante aspecto desse ponto é que não há uma clara definição de como seriam feitos os ajustes nas faixas salariais associadas a cada alíquota. Se os valores nominais dessas faixas salariais não forem reajustados de tempos em tempos para se levar em conta os efeitos da inflação, então os reajustes salariais para cobrir as perdas no poder de compra devido a inflação jogariam muitos servidores públicos em alíquotas cada vez maiores, não condizentes com a tabela original. Assim, sugere-se a criação de um reajuste automático anual dos valores dessa tabela pela variação do IPCA do ano anterior. Outra alternativa a esse ponto da proposta seria manter as alíquotas atuais de contribuição previdenciária; compensando-se a perda de arrecadação com a criação de novas alíquotas no IRPF, inclusive para salários superiores a $ 39.000,00, por exemplo, que incluiria os servidores que ganham acima do teto como também os demais trabalhadores do setor privado com rendimentos nessa faixa.
Sobre (vi), não se sabe exatamente quais seriam os custos de transição para o sistema de capitalização (até porque os detalhes desse sistema seriam colocados posteriormente em Lei Complementar). De qualquer forma, as estimativas existentes mostram valores proibitivos (podendo chegar a centenas de bilhões de reais por ano, caso seja implantado o novo regime de forma imediata), aspecto particularmente grave, dada a deterioração da relação DBGG/PIB no país. E, a depender das regras da capitalização, ainda não definidas na proposta, e apesar da adesão voluntária; as empresas podem acabar induzindo os trabalhadores a optar pelo Regime de Capitalização sob pena de serem demitidos. A sugestão seria retirar da proposta de Reforma da Previdência essa discussão, inclusive para não dificultar sua própria aprovação. Sobre o ponto (vii), a desconstitucionalização dos parâmetros pode trazer variações mais recorrentes e não necessariamente mais prudentes nas próprias regras previdenciárias, o que não é desejável.
Por fim, pelo bem da transparência do debate sobre políticas públicas, seria interessante que os dados da Reforma da Previdência Social, especialmente aqueles referentes às hipóteses sobre os diversos parâmetros que impactam nas previsões de receitas e despesas, fossem disponibilizados publicamente. O acesso aos microdados poderia ser importante para que os modelos utilizados fossem avaliados por outros especialistas e, eventualmente, aprimorados, até para se elevar a precisão das previsões e se criar uma memória de cálculo. Além disso, algumas hipóteses da atual proposta de reforma parecem ser muito pessimistas, como, por exemplo, a projeção de crescimento do PIB, de 2,75% em 2023, se reduzindo monotonicamente até 0,75% em 2060. Outro ponto que pode ser mais bem trabalhado é a Reforma da Previdência dos Militares, em que se teria uma economia líquida de R$ 10 bilhões, em 10 anos – dada a reestruturação da carreira e com a hipótese de uma redução do quantitativo de tropas –, inclusive para que se fortaleça a defesa de uma reforma justa e que impacte a todos.
O Parecer do Relator da Reforma da Previdência apresentou uma série de mudanças na versão da Reforma discutida neste artigo, algumas das quais corrigem pontos aqui elencados, enquanto outras inserem novas questões controversas. Sobre o ponto (i), o tempo mínimo de contribuição passou de 20 para 15, no caso das mulheres, o que foi um avanço importante. No entanto, foram mantidos os 20 anos para os homens, o que pode ser algo elevado – até porque a mediana do tempo de contribuição, entre os mais pobres, dos homens é justamente 20 anos. Os itens (iii), (iv), (vi) e (vii) foram retirados da PEC da Previdência, o que também vai de encontro ao caminho apontado em nosso artigo. Portanto, a princípio, permanecem ainda as questões elencadas nos itens (i) – parcialmente –, (ii) e (v), além de outras mais gerais indicadas no parágrafo anterior. Ademais, o Parecer retirou um ponto que merece atenção, qual seja, a validade da reforma para estados e municípios (que geraria uma economia de algumas centenas de bilhões de reais, em 10 anos). Este era de extrema relevância para os entes subnacionais que, em grande parte, se encontram em situação tão ou mais complicada do que o governo federal. Ainda mais porque esses entes têm restrições legais adicionais que dificultam atravessar momentos de problemas fiscais, como restrições para firmar novos empréstimos, ou para reduzir despesas, uma vez que parte significativa de suas despesas é com pessoal (ativos e inativos).
Em resumo, a reforma previdenciária é necessária, mas não suficiente, para a retomada do desenvolvimento econômico sustentado, e tampouco para uma plena recuperação fiscal. A reforma retira um grande foco de incerteza sobre a situação fiscal no horizonte de médio e longo prazos; no entanto, tem pouco efeito prático sobre o resultado primário no curto prazo. Para que tenhamos um desenvolvimento sustentado, de fato, ainda seriam necessárias outras reformas (tal como a reforma tributária), incentivos à mudança da estrutura produtiva do país na direção de setores mais intensivos em tecnologia e, no curto prazo, alguma flexibilização fiscal – principalmente no tocante aos investimentos. E para uma consolidação fiscal mais célere, seriam necessários, ainda, uma aceleração do crescimento econômico (com recuperação das receitas pelo fechamento do hiato do produto) e provavelmente uma elevação temporária na carga tributária. Outro tema que deveria ser discutido é uma nova regra para a evolução do Salário Mínimo (SM) que, inclusive, afeta diretamente as despesas previdenciárias (sendo que 66,5% recebem até 1 SM, 83,4% até 2 SMs; além de elevar a informalidade, a depender do grau de elevações do SM), por exemplo, para algo como a meta de inflação somada à média móvel do crescimento da renda per capita dos últimos cinco anos.
* Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. E-mail: joreiro@unb.br.
** Discente do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade de Brasília. E-mail: helder.laferf@gmail.com.
link: https://www.valor.com.br/cultura/6307031/reforma-da-previdencia-o-desafio-esta-nos-detalhes.