A economista Zeina Latif em artigo publicado hoje no Estado de São Paulo (Presidente a balança encolheu) afirma que “a cotação do dólar tem influencia modesta, afetando mais a rentabilidade do exportador, e menos o volume exportado” na explicação do pífio desempenho das exportações brasileiras e, dessa forma, no agravamento do déficit em conta corrente. Segundo ela, o problema fundamental é a estagnação do comércio mundial. Além disso ela afirma que o comportamento do déficit em conta corrente não tem influência – ou uma influência apenas marginal – sobre a trajetória da taxa de câmbio. Ambas as afirmações estão erradas.
Vamos por partes.
Em primeiro lugar, é verdade que o ritmo de expansão do comércio mundial está encolhendo. Isso significa que o ritmo de expansão das exportações mundiais está se reduzindo. Supondo dada a participação do Brasil nas exportações mundiais, então a desaceleração do ritmo de crescimento das exportações mundiais irá levar a uma redução da taxa de crescimento das exportações brasileiras.
A participação de um país nas exportações mundiais depende de sua competitividade preço (o que é fundamentalmente afetado pela taxa real de câmbio) e pela competitividade extra preço, a qual depende da intensidade tecnológica das exportações, variável chave para determinar a elasticidade renda dos produtos exportados. Isso posto, para que o Brasil possa aumentar a taxa de crescimento das suas exportações num contexto em que a taxa de crescimento das exportações mundiais está declinando é fundamental que o país seja capaz de aumentar a sua participação nas exportações mundiais, o que exige um aumento da competitividade preço (desvalorização do câmbio) e/ou da competitividade extra-preço (aumento da participação dos produtos com alta intensidade tecnológica e alta elasticidade renda das exportações na pauta de exportações).
É aqui que se encontra o problema estrutural da balança comercial brasileira. Mais de 50% das exportações brasileiras é constituído de produtos básicos ou primários (soja, minério de ferro, café, cacau, etc) cuja elasticidade preço da demanda de exportações é muito baixa, ou seja, são pouco sensíveis a desvalorização do câmbio real. Dessa forma, mantida inalterada a composição de nossa pauta de exportações, a desvalorização do câmbio real terá um efeito relativamente pequeno sobre o saldo comercial e, dessa forma, sobre a dinâmica do déficit em conta corrente. Não bastasse isso, quando olhamos para a série de taxa real efetiva de câmbio para exportação de produtos básicos deflacionada pelo IPA na série do IPEADATA constatamos que no período de janeiro a setembro de 2019 ocorreu uma apreciação, isso mesmo, uma apreciação de 2,58%; ao passo que no caso dos produtos manufaturados a taxa real efetiva de câmbio se depreciou 7,2%. Como os produtos básicos respondem por mais de 50% da pauta de exportações e os manufaturados pouco mais de 30%, a desvalorização média do câmbio nesse período foi de apenas 2,8%, uma valor muito baixo para produzir qualquer efeito perceptível sobre o saldo da balança comercial.
As exportações de manufaturados são sim sensíveis a desvalorização da taxa de câmbio; mas o aumento da competitividade preço das exportações de manufaturados nos últimos anos (de 33,96% desde janeiro de 2013 até setembro de 2019) foi compensada pela redução da competitividade extra preço decorrente do obsolescência tecnológica crescente do nosso parque industrial, causada pelos investimentos que não foram realizados nos últimos anos devido a grande recessão de 2014-2016. A atualização tecnológica da indústria brasileira exige maciços investimentos na compra de novos bens de capital, os quais só serão feitos se e quando (i) a indústria brasileira recuperar as suas margens de lucro e (ii) os empresários estiverem confiantes no crescimento futuro de suas vendas. A desvalorização da taxa real de câmbio é fundamental para o aumento das margens de lucro pois reduz o valor em moeda estrangeira do salários nominais; bem como ao dar acesso a demanda externa permite que um aumento da confiança dos empresários na expansão futura de suas vendas.
Do exposto acima segue-se que a desvalorização cambial ocorrida até agora é claramente insuficiente para estimular as exportações de manufaturados e assim reduzir o déficit em conta corrente. Chama atenção o fato de que com a economia crescendo em torno de 1% a.a no período 2017-2019 o déficit em conta corrente acumulado nos últimos 12 meses atingiu 3% do PIB (https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/26/deficit-em-conta-corrente-aumenta-para-3-do-pib.ghtml). Se o crescimento da economia brasileira se acelerar para 2% em 2020 como prevê o governo e os analistas do mercado financeiro, o déficit em conta corrente deverá passar a marca de 4,0% do PIB, valor que no caso brasileiro é um claro indicador antecedente de crise cambial. Conforme podemos verificar no gráfico abaixo a ultima vez que o déficit em conta corrente atingiu essa marca foi em 2015, ano no qual ocorreu uma expressiva e súbita desvalorização da taxa nominal de câmbio, a qual se traduziu numa forte aceleração da inflação, num cenário em que o PIB se contraiu quase 4% !
Em suma, a taxa real de câmbio afeta sim o volume de exportações mas a reprimarização da pauta de exportações ocorrida no período 2003-2013 reduziu a sensibilidade das exportações a variação da taxa real de câmbio; além disso, déficits em conta corrente elevados – acima de 4% do PIB – tem se mostrado claramente insustentáveis no Brasil, sendo um sinal antecedente muito claro de crise cambial. Dessa forma, não é verdade que a dinâmica do déficit em conta corrente seja neutra do ponto de vista da evolução da taxa de câmbio.