O teto de gastos foi criado em 2016 pelo então presidente Michel Temer. Visava reduzir despesas e investimentos do governo federal para impedir o crescimento da dívida pública e abrir espaço para investidores privados. Mas quando veio a crise econômica, os empresários buscaram amparo no governo, que derrubou o teto. Agora discute-se a elaboração de nova regra fiscal que corte despesas e, ao mesmo tempo, favoreça o crescimento econômico. Neste Agenda, o professor de economia da UnB, José Luis Oreiro, apresenta as bases de uma dessas propostas.
Economista diz que “o Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita ao governo realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB”
Por: João Vitor Santos | 28 Novembro 2022
Bastou o presidente eleito Lula erguer a voz para falar que o combate à fome e a busca por um bem-estar social não devem ser preteridos a um ajuste fiscal para que começasse uma cantilena acerca do descontrole das contas. Com o dólar em alta e a bolsa de valores lá embaixo, o discurso hegemônico se arvora para defender, por vezes até de forma velada, o famigerado teto de gastos. Para o economista e professor José Luis Oreiro, “o problema é que o debate econômico feito no Brasil, na contramão do que ocorre atualmente nos países desenvolvidos, é baseado numa visão pré-keynesiana a respeito do funcionamento do sistema econômico”. “Essa visão é repetida ad nausean pelos economistas ligados direta ou indiretamente ao mercado financeiro e propagada pela grande mídia, onde há pouco ou nenhum espaço para vozes discordantes do ‘consenso macroeconômico’”, completa.
Oreiro observa que tal postura interdita um debate efetivo sobre o teto de gastos. “Este assumiu um status de ‘dogma de fé’. Como sabemos, aqueles que divergem de um dogma são considerados heréticos e ridicularizados pelos defensores da fé verdadeira”, critica. Por isso, na entrevista a seguir concedia por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele detalha a perspectiva de que o Estado tem condições de expandir seus gastos ainda sem perder o controle. “O Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita ao governo realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB. O teto de gastos não atende a nenhuma das duas condições, razão pela qual precisa ser substituído o quanto antes por outro arcabouço fiscal”, pontua.
O professor, que com outros economistas endereçou uma carta ao governo eleito defendendo o fim do tacanho e truculento controle de gastos, detalha os principais pontos dessa correspondência e indica um caminho saudável, pela via da economia, para a conciliação nacional. “Na economia, a conciliação passa necessariamente pela retomada do desenvolvimento econômico. Esse tem que ser o foco. Não adianta insistir na agenda do ajuste fiscal sem recuperar o crescimento da economia brasileira, porque se trata de enxugar gelo. Não existe ajuste fiscal que pare em pé sem que a economia cresça”, explica.
Por fim, ainda escarna as contradições do teto que nem sequer cumpre o que busca. “Veja como o ‘teto de gastos’ é uma sandice: para que o governo federal pudesse fazer frente à pandemia de covid-19, foi necessário fazer uma nova emenda constitucional para gerir o momento, porque a regra fiscal, aprovada pelo governo de Michel Temer, simplesmente não tinha instrumentos para lidar com esse tipo de situação. Em 2020, os gastos realizados fora do teto somaram R$ 507,9 bilhões”, exemplifica.
José Luis Oreiro
Foto: Arquivo pessoal
José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB e do Programa de Doutorado em Integração Econômica da Universidade do País Basco, na Espanha, pesquisador Nível I do CNPq, membro sênior da Post-Keynesian Economics Society e da European Association for Evolutionary Political Economy. É líder do grupo de pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento, do CNPq e assessor do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal – CORECON-DF. Entre suas publicações, mais de 130 artigos em revistas científicas no Brasil e no exterior, destacamos os livros: Macroeconomia do desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana(LTC, 2016) e Macrodinâmica pós-keynesiana: crescimento e distribuição de renda(Alta Books, 2018).
Confira a entrevista.
IHU – Como podemos compreender as resistências à revogação do teto de gastos?
José Luis Oreiro – Começo respondendo com uma citação de John Maynard Keynes tirada do prefácio do seu magnum opus “A teoria geral do emprego, do juro e da moeda” publicada em 1936: “A dificuldade não reside em desenvolver novas ideias, mas em escapar das velhas, que se ramificam, para aqueles que foram educados como a maioria de nós, em cada canto da nossa mente”.
Para Oreiro, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (Atlas, 1982),de Keynes, permite compreender as resistências à revogação do teto de gastos
Foto: Divulgação
O teto de gastos é o equivalente moderno do padrão-ouro, sistema monetário que vigorou até o colapso do sistema de Bretton Woods que estabelecia que a base monetária deveria estar “lastreada” em ouro para assegurar a confiança do mercado no valor da moeda.
No Brasil, a partir de 2016, criou-se uma convenção (definida por Keynes como uma crença compartilhada) de que o crescimento econômico só seria restaurado por intermédio de uma regra fiscal que impedisse o governo de aumentar seus gastos primários (o gasto com juros nunca é mencionado, pois se trata de uma “despesa ausente” no debate público sobre o ajuste fiscal no Brasil), pois o aumento dos gastos do governo levaria a um deslocamento (efeito crowding-out) dos investimentos do setor privado.
Trata-se de uma versão tupiniquim da velha “visão do tesouro” apresentada no início da década de 1930 pelo staff do Tesouro Britânico contra o programa de obras públicas defendido por Lloyd George, nas eleições gerais de 1929 no Reino Unido, para reduzir as elevadas taxas de desemprego observadas no país desde 1924. A revolução keynesiana demonstrou que a “visão do tesouro” pressupõe uma economia que está operando permanentemente em estado de pleno emprego, o qual é apenas um caso fortuito na dinâmica das economias capitalistas, as quais tendem a operar em uma situação persistente de subutilização da capacidade produtiva (homens e máquinas).
O Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB – José Luis Oreiro Tweet
Um debate reduzido a “dogma de fé”
O problema é que o debate econômico feito no Brasil, na contramão do que ocorre atualmente nos países desenvolvidos, é baseado numa visão pré-keynesiana a respeito do funcionamento do sistema econômico, sendo que essa visão é repetida ad nausean pelos economistas ligados direta ou indiretamente ao mercado financeiro e propagada pela grande mídia, onde há pouco ou nenhum espaço para vozes discordantes do “consenso macroeconômico”.
Dessa forma, o debate público sobre o teto de gastos fica interditado, pois este assumiu um status de dogma de fé. Como sabemos, aqueles que divergem de um dogma são considerados heréticos e ridicularizados pelos defensores da fé verdadeira.
A forma pela qual o presidente Lula se expressou não foi muito feliz, porque é totalmente possível compatibilizar a disciplina fiscal com os gastos sociais – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Que leitura faz das críticas que o presidente Lula vem recebendo ao falar que os gastos sociais não devem ser preteridos em nome do controle fiscal?
José Luis Oreiro – Acredito que a forma como o presidente Lula se expressou não foi muito feliz, porque é totalmente possível compatibilizar a disciplina fiscal com os gastos sociais. A questão fundamental, no debate político, é definir qual o tamanho do Estado que a sociedade deseja.
A história brasileira mostrou repetidas vezes, por intermédio da eleição de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff por dois mandatos consecutivos cada um, que a sociedade Brasileira quer um Estado do bem-estar social. Parafraseando Santo Agostinho: “Populus locutus, contenda finita” (“o povo falou, o debate está encerrado”, numa tradução livre). A frase original de Santo Agostinho é: “Roma locuta, contenda finita” (Roma se pronunciou, acabou o debate). Sendo assim, a disciplina fiscal consiste tão somente em arrecadar o volume de impostos necessários para financiar aquilo que o povo deseja. Se o déficit fiscal (estrutural, ou seja, ajustado pelo ciclo econômico) para financiar o Estado do bem-estar social se mostrar insustentável, então a solução econômica e política é aumentar a carga tributária para garantir a solvência intertemporal das contas do governo. É exatamente isso o que se espera de um governo de centro-esquerda, como é o caso do presidente eleito.
A história brasileira mostrou (…) que a sociedade Brasileira quer um Estado do bem-estar social – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Precisamos de um controle fiscal?
José Luis Oreiro – Temos que definir precisamente o que se entende por controle fiscal. Defino controle fiscal como uma situação na qual a relação dívida pública/PIB apresenta uma tendência de estabilidade ou queda no médio e longo prazo. No curto prazo, não há nenhum problema em aumentar a dívida pública como proporção do PIB, pois uma das funções da política fiscal é precisamente estabilizar as flutuações econômicas e garantir que a economia funcione o mais próximo possível do pleno emprego dos fatores de produção.
Esse princípio elementar de finanças públicas tem sido omitido do debate público no Brasil, onde frequentemente se faz uma comparação grosseira entre as finanças públicas e as finanças de uma dona de casa. Essa comparação parece ser baseada no bom senso, mas veja: se fôssemos nos basear no bom senso, então a Terra deveria ser plana, dado que ninguém é capaz de ficar em pé, ao menos por muito tempo, sobre uma bola de futebol. Em suma, comparar as finanças públicas com as finanças de uma dona de casa é “terraplanismo econômico”.
Por outro lado, uma situação na qual a relação dívida pública/PIB aumenta de forma persistente, no médio e no longo prazo, não é sustentável, mesmo que a dívida pública esteja denominada na moeda legal do país. O real não é uma moeda de reserva internacional, razão pela qual se encontra num nível inferior na chamada hierarquia de moedas. Um aumento persistente da dívida pública pode levar o mercado – atuando com base nas suas convenções – a retirar dinheiro do país, produzindo uma desvalorização acentuada e súbita da taxa de câmbio, ou seja, uma crise cambial.
Está claro que o Banco Central tem instrumentos para amenizar os impactos dessa crise se assim o desejar. Mas a instabilidade nos mercados financeiros acabará por aumentar a percepção de incerteza de parte dos empresários, resultando em uma redução do investimento privado e, consequentemente, em recessão.
Em suma, o Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita ao governo realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB. O teto de gastos não atende a nenhuma das duas condições, razão pela qual precisa ser substituído o quanto antes por outro arcabouço fiscal.
No curto prazo, não há nenhum problema em aumentar a dívida pública como proporção do PIB, pois uma das funções da política fiscal é precisamente estabilizar as flutuações econômicas e garantir que a economia funcione – José Luis Oreiro Tweet
IHU – O senhor, junto de outros economistas, encaminhou uma carta a Lula em apoio à revogação do teto de gastos. Entre outras ponderações, vocês consideram esse teto como uma falácia, dada a sua ineficácia para o controle fiscal. Gostaria que o senhor recuperasse esse argumento e o detalhasse.
José Luis Oreiro – Na carta aberta ao presidente Lula, está escrito:
“A ideia de que o teto de gastos é fundamental para garantir a disciplina fiscal é uma falácia. Em primeiro lugar, o teto de gastos se mostrou incapaz de impedir que o governo Bolsonaro não apenas realizasse um volume de gastos de R$ 795 bilhões extrateto em quatro anos, como não impediu a criação de novos gastos públicos a menos de seis meses das eleições, algo que é explicitamente vedado pela legislação eleitoral. Deste modo, o teto de gastos não impediu o maior populismo eleitoral da história da República sob o governo de Jair Bolsonaro, com enorme complacência do mercado financeiro.”
A ideia que levou à criação do teto de gastos era congelar o gasto primário da União por um período de dez anos, de forma que o crescimento do PIB durante esse período se encarregasse de reduzir o gasto primário como proporção do PIB entre 3 e 4 pontos porcentuais. Dessa forma, continua o argumento, o governo federal voltaria a gerar superávits primários expressivos, capazes de gerar uma queda da dívida pública como proporção do PIB, sem ter que realizar um aumento da carga tributária.
Em 2016, no debate público sobre a PEC do teto de gastos, afirmei que o teto era insustentável porque implicava numa redução do gasto públicoper capita, uma vez que a população brasileira crescia a um ritmo de 0,8% a.a. Dessa forma, o congelamento do gasto público implicava numa redução da oferta de bens e serviços públicos para a população num contexto em que existem claras deficiências na área de saúde, educação e assistência social. Além disso, existiam componentes do gasto da União que apresentavam taxas de crescimento real significativas e que não poderiam ser significativamente reduzidas, a não ser que direitos garantidos pela Constituição fossem negados.
É o caso, por exemplo, dos gastos com a Previdência Social. Mesmo após a reforma da Previdência em 2019, os gastos previdenciários continuaram aumentando em termos reais devido ao simples crescimento vegetativo dos aposentados e pensionistas. Sendo assim, a manutenção do teto de gastos num contexto de crescimento real das despesas previdenciárias exigiria a redução do chamado gasto não obrigatório, ou seja, aquele que o governo precisa executar por estarem amparados na Constituição.
Quais gastos foram cortados? O gasto com investimento público em infraestrutura, os gastos de consumo e custeio das universidades federais, o orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia e alguns programas de assistência social, como o Abono Salarial. Durante o governo Bolsonaro, os salários reais dos servidores públicos também apresentaram uma queda significativa devido à não reposição das perdas inflacionárias.
Quais gastos foram cortados? O gasto com investimento público em infraestrutura, os gastos de consumo e custeio das universidades federais, o orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia e alguns programas de assistência social, como o Abono Salarial – José Luis Oreiro Tweet
Teto de gastos, uma sandice
Durante a pandemia de covid-19, o Congresso aprovou a emenda constitucional do “orçamento de guerra” que suspendia o teto de gastos até 31-12-2020. Veja como o “teto de gastos” é uma sandice: para que o governo federal pudesse fazer frente à pandemia de covid-19, foi necessário fazer uma nova emenda para gerir o momento, porque a regra fiscal, aprovada pelo governo de Michel Temer, simplesmente não tinha instrumentos para lidar com esse tipo de situação. Em 2020, os gastos realizados fora do teto somaram R$ 507,9 bilhões.
No fim de 2021, com a aproximação das eleições e a baixa popularidade de Bolsonaro, o governo conseguiu que o Congresso aprovasse a chamada PEC dos Precatórios, visando abrir espaço no orçamento para manter o Auxílio Brasil em R$ 400,00 neste ano.
A PEC trouxe duas medidas. Uma delas foi alterar a regra de cálculo do teto de gastos. A regra originalmente estabelecida na EC nº 95 estabelecia que o valor autorizado para as despesas do governo seria atualizado pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. Isso porque o orçamento é formulado ao longo do segundo semestre do ano anterior. Dessa forma, o orçamento poderia ser formulado com a informação exata do valor do reajuste do teto.
Com a mudança proposta pelo governo Bolsonaro em 2021, o reajuste do teto passou a ser fixado com a inflação acumulada até dezembro. Ou seja, o orçamento é inicialmente formulado com base na inflação esperada para o ano e, ao fim dele, poderia ser ajustado, caso a inflação, no período final do ano, fosse diferente da inflação acumulada em 12 meses até junho.
O governo fez isso porque já projetava que a inflação fecharia 2021 mais alta do que o acumulado em 12 meses até junho daquele ano. Essa manobra permitiu ao governo gastar, em 2022, R$ 26 bilhões a mais do que seria autorizado pela regra original do teto, segundo os cálculos do economista Bráulio Borges do IBRE/FGV.
Além disso, a PEC autorizou o atraso no pagamento de precatórios (dívidas da União com pessoas e empresas já reconhecidas pela Justiça). O adiamento desses gastos abriu uma folga de mais R$ 49 bilhões no teto.
Veja como o “teto de gastos” é uma sandice: para que o governo federal pudesse fazer frente à pandemia de covid-19, foi necessário fazer uma nova emenda constitucional para gerir a situação – José Luis Oreiro Tweet
PEC kamikaze
Em julho de 2022, o Congresso aprovou a chamada PEC kamikaze, autorizando uma série de benefícios acima do limite constitucional, como o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 até 31 de dezembro e novos auxílios para caminhoneiros e taxistas. Foi necessário modificar a Constituição não só devido ao limite do teto, mas também para contornar a legislação eleitoral, que veda a criação de benefícios às vésperas da eleição.
Bráulio Borges calcula que serão gastos R$ 41,2 bilhões acima do teto até o final deste ano, devido à PEC kamikaze. Somando isso ao atraso dos precatórios e à mudança do cálculo do teto, o governo terá usado R$ 116,2 bilhões acima do que a regra original permitiria para este ano.
Um velho adágio popular diz que “contra fatos não há argumentos”. E os fatos mostram que o teto de gastos não só se mostrou incapaz de congelar os gastos primários da União como também não impediu o uso do orçamento público para fins eleitoreiros na maior escala vista em toda a história da República brasileira.
Os fatos apontam que o teto de gastos não só se mostrou incapaz de congelar os gastos primários da União como também não impediu o uso do orçamento público para fins eleitoreiros na maior escala vista em toda a história – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Ainda na carta, é dito que é equivocado considerar que o país tem taxas de juros altíssimas pelo fato de o Brasil ser considerado mau pagador. Por que há esse equívoco e o que explica as atuais taxas de juros?
José Luis Oreiro – O risco de um calote soberano é algo que é precificado no mercado. O índice EMBI+, criado pelo banco J.P.Morgan, mede a diferença (spread) entre as taxas de juros pagas sobre títulos da dívida pública de diversos países que são negociados nos Estados Unidos e a taxa de juros dos títulos da dívida pública norte-americana com idêntico prazo de maturidade. Dessa forma, a percepção de mercado sobre a “qualidade do devedor” pode ser visualizada dia a dia nos preços de mercado dos títulos da dívida pública.
Uma simples inspeção nos dados para o EMBI + Brasil mostra que o mercado não considera o Brasil um mau pagador, pois o spread tem se mantido estável, flutuando numa banda entre 250 a 350 pontos ao longo dos últimos anos. No fim do governo Lula, o spread soberano se encontrava num patamar mais baixo, em torno de 190 pontos. Se a taxa de juros no Brasil fosse determinada apenas com base na percepção de mercado sobre a “qualidade do devedor”, então a Selic nominal deveria estar hoje entre 6 e 7% a.a., ao invés de 13,75%.
A taxa de juros está em 13,75% porque o Banco Central acredita que esse é o valor adequado para trazer a inflação para a meta de 3,5%, com intervalo de tolerância de 1,5 p.p; ou seja, um valor máximo de 5% para o ano de 2022. Isso não tem nenhuma relação com a percepção de mercado sobre o risco de emprestar dinheiro para o governo brasileiro, mas com o modus operandi da política monetária no Brasil. Dado que no Brasil é dever do Banco Central manter a inflação na meta, que a inflação é medida pelo IPCA cheio, sem expurgos para itens mais voláteis como alimentos e energia, e que o prazo de convergência da inflação para a meta é o ano calendário, fica muito difícil para o Banco Central não impor doses cavalares de aumento da taxa de juros, mesmo num contexto de atividade econômica fraca, para cumprir aquilo que a sociedade brasileira manda que ele faça. Daqui, segue-se que só será possível ter taxas de juros mais baixas no Brasil por intermédio de uma mudança no arcabouço institucional da política monetária.
Uma simples inspeção nos dados para o EMBI + Brasil mostra que o mercado não considera o Brasil um mau pagador, pois o spread tem se mantido estável, flutuando numa banda entre 250 a 350 pontos ao longo dos últimos anos – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Que caminho deve ser adotado pelo novo governo quanto à política de juros?
José Luis Oreiro – O primeiro passo será uma flexibilização do regime de metas de inflação no Brasil. Uma ideia é aproveitar a lei que garantiu a autonomia operacional do Banco Central do Brasil para regulamentar o mandato duplo para a autoridade monetária. Embora essa lei preveja que o Banco Central deve se preocupar também com os efeitos da política de juros sobre o nível de atividade econômica, não há nenhuma orientação específica a respeito de como essa “preocupação” deve se manifestar em termos da condução da política monetária.
Eu proponho que o Congresso Nacional aprove uma lei que estabeleça uma taxa mínima de crescimento do PIB como objetivo complementar da política monetária. Assim, em períodos de baixo crescimento – por exemplo, abaixo de 1% –, o Banco Central deverá calibrar a taxa Selic de maneira a estimular a atividade econômica, de forma a que o crescimento anual se situe acima desse patamar mínimo.
Proponho que o Congresso Nacional aprove uma lei que estabeleça uma taxa mínima de crescimento do PIB como objetivo complementar da política monetária – José Luis Oreiro Tweet
Inércia inflacionária
Um segundo elemento fundamental será reduzir o grau de inércia inflacionária existente na economia brasileira. No trabalho intitulado “The Unfinished Stabilization of the Real Plan: An Analysis of the Indexation of the Brazilian Economy”, escrito em coautoria com o professor Júlio Fernando Costa Santos, da Universidade Federal de Uberlândia, e que será publicado em 2023 no livro Central Banks and Monetary Regimes in Emerging Economies – organizado pelos professores Luiz Fernando de Paula (IE/UFRJ) e Fernando Ferrari Filho (UFRGS) e editado pela Edward Elgar (Reino Unido) –, mostramos que a permanência da indexação de preços, salários e contratos com prazo de maturidade superior a um ano faz com que o coeficiente de autocorrelação das séries de inflação (o termo técnico para designar o grau de inércia inflacionária) no Brasil seja significativamente maior do que o observado nos Estados Unidos.
Dessa forma, o Banco Central do Brasil precisa usar uma dosagem de juros maior do que o Federal Reserve para conseguir reduzir a inflação. A indexação de quase 50% da dívida pública federal à taxa Selic, por sua vez, faz com que o custo de rolagem da dívida pública aumente instantaneamente com a elevação da taxa de juros por parte do Banco Central, ou seja, temos um efeito de contágio da política monetária sobre a dívida pública, justamente o inverso do que os economistas ortodoxos afirmam. Sendo assim, para eliminar o problema dos juros no Brasil será necessária uma reforma monetária com a extinção de todos os mecanismos de indexação ainda existentes no Brasil, o que inclui a substituição de todo o estoque de Letras Financeiras do Tesouro por papéis pré-fixados.
A PEC de transição é o melhor que pode ser feito por um governo que ainda não foi empossado e que tem pouco tempo disponível para garantir espaço no orçamento de 2023 – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Qual sua avaliação quanto à PEC da transição? É o melhor caminho do ponto de vista econômico e social? E do ponto de vista da conciliação de forças, mercado e investimento social?
José Luis Oreiro – A PEC de transição é o melhor que pode ser feito por um governo que ainda não foi empossado e que tem pouco tempo disponível para garantir espaço no orçamento de 2023 para cumprir algumas das mais importantes promessas de campanha como, por exemplo, um valor de R$ 600,00 para o Bolsa Família com acréscimo de R$ 150,00 por filho.
IHU – Qual seu diagnóstico caso essa PEC da transição não seja aprovada?
José Luis Oreiro – Esse cenário é impossível.
IHU – São muitos os analistas que dizem que o grande desafio do governo Lula III será a promoção de uma conciliação no Brasil. Na área econômica, como essa conciliação se apresenta? Que forças estão em jogo?
José Luis Oreiro – Na economia, a conciliação passa necessariamente pela retomada do desenvolvimento econômico. Esse tem que ser o foco. Não adianta insistir na agenda do ajuste fiscal sem recuperar o crescimento da economia brasileira, porque se trata de enxugar gelo. Não existe ajuste fiscal que pare em pé sem que a economia cresça. Vimos isso após a implantação do teto de gastos.
Os defensores do teto de gastos afirmavam, em 2016, que ele seria a solução definitiva para o desequilíbrio fiscal no Brasil. Não foi. No fim de 2022, continuamos discutindo o problema do desequilíbrio fiscal no Brasil. Por quê? Certamente que não foi devido à adoção de medidas de controle fiscal. A reforma da Previdência foi aprovada em 2019. O teto de gastos e a reforma da Previdência deveriam ter equacionado a questão fiscal, mas isso não ocorreu. O que ficou faltando? Faltou o principal: a economia brasileira não retomou a tendência de crescimento do período 1980-2014 de 2,88% a.a, isso mesmo antes da pandemia da covid-19.
Entre 2017 e 2019, a economia brasileira cresceu em torno de 1,5% a.a. A agenda de reformas definida no documento “Ponte para o Futuro”, que serviu de base para a política econômica do governo Michel Temer, foi um fracasso retumbante.
Na economia, a conciliação passa necessariamente pela retomada do desenvolvimento econômico. Esse tem que ser o foco – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Diante do atual cenário nacional e internacional, quais são os três pontos de que a equipe econômica do governo Lula III não pode abrir mão?
José Luis Oreiro – A futura equipe econômica precisa apresentar três coisas para a sociedade brasileira.
1. Uma nova regra que permita a realização de uma política fiscal anticíclica no curto prazo e garanta a sustentabilidade da dívida pública no médio e longo prazo.
2. Um projeto de reforma monetária que reformate o arcabouço institucional do regime de metas de inflação e elimine a indexação de preços, salários, contratos e dívida pública.
3. Um projeto para a reindustrialização do país que seja compatível com a transição para uma economia de baixo carbono.
A agenda de reformas definida no documento “Ponte para o Futuro”, que serviu de base para a política econômica do governo Michel Temer, foi um fracasso retumbante – José Luis Oreiro Tweet
IHU – Deseja acrescentar algo?
José Luis Oreiro – Apenas que estou à disposição para colaborar com o governo eleito no que ele precisar. Este governo tem que dar certo, porque a opção será o retorno da barbárie que vivemos durante o governo Bolsonaro.
Nas campanhas eleitorais, os principais candidatos à presidência já admitiram que o teto de gastos impede a criação de políticas públicas de combate à pobreza. (Foto: Reprodução)
As pressões provocadas por temas sociais, como insegurança alimentar e desemprego, forçarão o próximo governante a extrapolar o teto de gastos – uma das principais ancoras da política fiscal. O ministro da Economia, Paulo Guedes, inclusive, admitiu, recentemente, que o atual governo já furou o teto, criado em 2016 para durar por mais 30 anos.
De acordo com a Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, até agora, o governo ultrapassou o teto em R$ 213 bilhões.
Ainda no ano passado, no âmbito das discussões sobre o auxílio emergencial, Paulo Guedes, batizou essa “licença para gastar” de “waver”, sob a justificativa de que a medida serviria para “atenuar o impacto socioeconômico da pandemia”. Este ano, a chamada PEC eleitoral, além de criar o estado de emergência, liberou R$ 41,25 bilhões do teto até o fim deste ano.
Nas campanhas eleitorais, os principais candidatos à presidência já admitiram que o teto de gastos impede a criação de políticas públicas de combate à pobreza.
O economista e comentarista na +Brasil News, José Luis Oreiro.
O mercado assimilou o waver para o ano de 2023, mas espera que o próximo governante busque o equilíbrio fiscal nos anos seguintes.
Na avaliação de especialistas, será impossível manter o teto se o país quiser resolver suas mazelas sociais. Por outro lado, será necessário se criar outros mecanismos para manter o equilíbrio nas contas públicas.
“O teto de gastos será abandonado. Mas alguma coisa terá que ser posta no lugar”, avalia o economista José Luis Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB). “O próximo ano não será para fazer ajuste fiscal, até porque não há muito o que cortar. Mas será necessário construir um arcabouço que que sinalize aos investidores que no médio e longo prazo a dívida pública estará sob controle”, prossegue.
Para ele, o que será necessário para o próximo presidente, no primeiro ano de governo é “gerar um arcabouço fiscal que seja crível e que o mercado e os agentes econômicos entendam que esse arcabouço impede a dívida pública de explodir no médio e longo prazo”.
No curto prazo, segundo Oreiro, o governo terá que ter “a flexibilidade necessária para fazer as políticas de assistência social que precisam ser feitas e retomar o investimento público em obras de infraestrutura e assim, gerar crescimento econômico”.
A polêmica criada pelo anuncio do uso de recursos dos precatórios e do Fundeb para financiar o necessário programa de renda cidadã a partir de 2021 mostrou de forma clara a contradição estrutural do governo Bolsonaro.
Jair Bolsonaro sonha em ser o líder da extrema direita mundial. O DNA de seu governo é o mesmo dos governos de direita na Hungria e na Polônia, ou seja, uma combinação de autoritarismo e conservadorismo nos costumes com a crescente perseguição a grupos como homossexuais, imigrantes, esquerdistas e a desvalorização do papel da mulher na sociedade. Mas existe uma diferença crucial entre o governo de Bolsonaro e os governos de extrema direita na Europa: nenhum deles adota uma cartilha liberal na economia como também cultivam uma profunda desconfiança com relação ao sistema financeiro, ao contrário de Bolsonaro que não só colocou um hiper-liberal para chefiar o ministério da economia, como ainda procurou alinhar as diretrizes econômicas de seu governo com a agenda do mercado financeiro.
A agenda do mercado financeiro é a agenda das (sic) reformas estruturais, entendida como um conjunto de propostas que tem por objetivo (i) fazer o necessário ajuste fiscal de longo-prazo por intermédio da redução de gastos, ao invés do aumento da carga tributária sobre o andar de cima da pirâmide da distribuição de renda, ou seja, os “Faria Limers”; (ii) privatizar as empresas estatais para alienar o patrimônio público para os investidores internacionais, com os quais mantem estreitas relações de negócios e assim ganhar muito dinheiro tanto na valorização desses ativos no curto-prazo como com comissões sobre vendas de ativos e otras cositas más; (iii) reduzir o tamanho do Estado do Bem Estar-Social, de forma a permitir não só a redução da carga tributária (e com isso aumentar seus lucros pós-impostos) como também aumentar a concorrência entre os trabalhadores no mercado de trabalho, reduzindo assim o nível salarial e, portanto, os seus lucros antes dos impostos.
Esta claro que essa agenda atende apenas aos interesses de uma minoria endinheirada, na qual se inclui o que restou dos empresários industriais brasileiros, reduzidos, contudo, a condição de meros encaixotadores de bens manufaturados produzidos no exterior. Em condições políticas normais essa agenda seria facilmente derrotada nas urnas pois é contrária aos interesses da imensa maioria da população brasileira, bem como ao desenvolvimento econômico de longo-prazo.
É justamente por isso que as “armas de distração de massa” do governo Bolsonaro foram vistas pelo mercado financeiro como um instrumento para desviar a atenção do povo da pauta econômica para questões como o “kit gay”, “armar a população”, “retirar os radares das estradas”, “covid-19 é uma gripezinha”, “cloroquina é eficaz no tratamento ao vírus”, “universidade federal só tem maconheiro”, “máscara é coisa de bundão” e outras idiotices irrelevantes. Enquanto as pessoas ficam debatendo esses temas de forma exaustiva e agressiva nas redes sociais, a “boiada” da agenda do mercado financeiro vai passando.
Até o início da pandemia do coronavirus essa aliança improvável do (sic) conservadorismo de Bolsonaro com os interesses do mercado financeiro parecia estar funcionando bem. A reforma da previdência foi aprovada em 2019 e o governo encaminhou no final do ano passado as PECs 186, 187 e 188 para avançar mais alguns passos na agenda do mercado financeiro.
Mas a pandemia do coronavírus foi o cisne negro que o mercado financeiro não previu. Com a pandemia o congresso nacional aprovou, apesar da oposição contrária do presidente da República e do Ministro Paulo Guedes, um programa de renda emergencial que atingiu quase 70 milhões de pessoas e impediu uma queda catastrófica no PIB no primeiro semestre. Com efeito, a queda do PIB brasileiro na primeira metade do ano, embora expressiva, foi menor do que a verificada no demais países da América Latina que não puderam ou quiseram adotar um programa similar. Em setembro o programa de renda emergencial foi estendido até dezembro, mas com um valor 50% menor.
O grande problema é o que fazer em 2021. No dia 31 de dezembro de 2020 o Estado de Calamidade Pública termina e o governo terá que voltar a obedecer as regras fiscais a partir de primeiro de janeiro de 2021. O problema é que esqueceram de combinar com o coronavírus e com a economia, pois não há nada que nos permita afirmar que a pandemia terá terminado no dia 31 de dezembro deste ano e, mais importante, os milhões de brasileiros que saíram fora da força de trabalho devido a pandemia mas que recebem a renda emergencial serão elevados a categoria de desempregados a partir do dia 01 de janeiro de 2021.
O Presidente já percebeu o tamanho da encrenca que vem pela frente e disse ontem aos seus apoiadores que 20 milhões de brasileiros não terão renda em 2021 se a renda cidadã não for aprovada. Pela primeira vez desde que assumiu o governo Bolsonaro criticou o mercado financeiro afirmando que (sic) “estamos todos no mesmo barco”, insinuando que se o governo dele fracassar, o mercado financeiro também vai perder dinheiro.
O problema é que a manutenção do teto de gastos torna impossível a implementação o programa de renda cidadã, a não ser por intermédio de subterfúgios como transformar dívida em receita (o uso dos precatórios) ou por uma claraboia no teto de gastos como usar os recursos do Fundeb (que é um fundo fora do teto de gastos) para financiar uma despesa adicional que é, na verdade, um desvio de função do fundo.
Aqui nos encontramos com o grande dilema do governo Bolsonaro. Para ter alguma condição de disputar a corrida eleitoral de 2022 (onde provavelmente terá como grande opositor o ex-Presidente Lula após o julgamento da suspeição de Sérgio Moro pelo STF), Bolsonaro precisa aumentar o gasto publico, o que significa por de pé tanto o programa de renda cidadã como o programa de investimentos públicos do Pró-Brasil, elaborado pela ala militar do governo. Se não fizer isso, haverá a maior contração fiscal da história em 2021, com a despesa primária da União passando de 27% do PIB em 2020 para 19% do PIB no próximo ano. Trata-se de uma receita certa para o colapso da economia em 2021, afundando de vez a popularidade do Presidente e, talvez, abrindo as portas para um processo de impeachment. Mas para fazer isso será necessário abandonar, explicita ou implicitamente, o teto de gastos. O mercado financeiro mostrou nos últimos dois dias que vai retaliar pesadamente o governo por intermédio de grande volatilidade nos preços dos ativos, ou seja, queda do IBOVESPA, aumento dos juros futuros e desvalorização do real frente ao dólar.
Um presidente realmente comprometido com os interesses do país mandaria o mercado financeiro as favas e trocaria o comando de toda a equipe econômica (Banco Central incluso), colocando no lugar economistas com a visão, a capacidade técnica e a coragem necessária para enfrentar a histeria do mercado financeiro. Não faltam instrumentos a disposição do Ministério da Economia e do Banco Central para enfrentar a turbulência nos mercados financeiros com o fim do teto de gastos. Mas como dizem os engenheiros aeronáuticos, turbulência pode ser desconfortável e, em alguns casos, apavorante mas não derruba avião. O que falta no governo Bolsonaro é, além de um Estadista na cadeira de Presidente da República, uma equipe formada por economistas cujo objetivo profissional não seja agradar o mercado financeiro em troca de um bem remunerado posto em alguma instituição financeira após deixarem o governo; mas trabalhar pelo bem comum e pelo desenvolvimento do país.
Em suma, Bolsonaro está entre a cruz e a espada. As próximas semanas irão revelar como ele vai solucionar esse dilema. Não dá mais para empurrar essa escolha com a barriga, como ele mesmo afirmou aos seus apoiadores ontem.
Um dos aspectos do surrealismo fantástico da argumentação dos que defendem a volta a (sic) normalidade fiscal em 2021, com a manutenção do Teto de Gastos tal como definido na EC 95, é a hipótese implícita de que o Brasil voltará a normalidade na madrugada do dia 01 de janeiro de 2021. Dessa forma, a virada do ano fará com que os efeitos sanitários e econômicos da pandemia do novo coronavírus sejam automaticamente eliminados e assim poderemos voltar ao “business as usual”.
Como perguntar não ofende, então aqui vai a minha pergunta aos (sic) economistas ortodoxos: vocês já combinaram o jogo com o coronavírus ?
Em tempo: nos países desenvolvidos não só há o temor real de uma segunda onda da contágios, como o debate sobre política fiscal parte da premissa que serão necessários novos estímulos fiscais em 2021 para sustentar a recuperação do nível de atividade econômica após o tombo ocorrido em 2020.
Os economistas José Luis Oreiro e André Lara Resende. Foto: Live do Fórum Nacional e Direitos Já!
“A ideia de suprimir, de asfixiar a capacidade de investimento do Estado é o caminho mais curto para a paralisia completa da economia e é onde nós estamos, num completo atoleiro”, afirma o economista André Lara Resende
O “dogmatismo fiscalista” e a necessidade de promover investimentos públicos estiveram no centro do debate “Gestão Macro na Pandemia”, no sábado (15), promovido pelo Fórum Nacional INAE (Instituto Nacional de Altos Estudos) em parceria com o Direitos Já! Fórum pela Democracia.
O debate foi coordenado por Raul Velloso, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e presidente do Fórum Nacional, com a participação dos economistas André Lara Resende, ex-diretor do Banco Central e ex-presidente do BNDES, do economista José Luis Oreiro, professor da UnB e ex-presidente da Associação Keynesiana Brasileira, e do sociólogo Fernando Guimarães, coordenador do Fórum pela Democracia que reúne mais de 300 organizações da sociedade civil e lideranças de 16 partidos políticos.
Raul Velloso
“Nós queremos descobrir os caminhos para crescer mais. Esse é o nosso objetivo”, resumiu o economista Raul Velloso, durante sua apresentação. Citando o resultado do índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) do segundo trimestre em relação ao primeiro, divulgado na semana passada, que mostrou queda de 10,9%, Velloso lembrou que quando esse nível de queda apareceu nos Estados Unidos muita gente lhe dizia: “estamos com pena dos americanos”. “E eu dizia, calma, porque quando sair o nosso, nós temos é que ter pena é da gente”, contou.
Fernando Guimarães
“TETO DE GASTOS É INVIÁVEL”
Raul Velloso destacou as discussões que dominaram na mídia e em torno do governo sobre a “questão do cumprimento do teto dos gastos”.
Citando “uma declaração vigente nos mercados financeiros que coloca toda a ênfase no cumprimento desse teto como sendo algo que se não for cumprido vai ser o caos no país”, Velloso manifestou sua posição contrária à visão de que o não cumprimento do teto será o caos. “Não cumprir o teto, que é muito difícil de cumprir, vai significar que o país vai ser abalado por isso? Vai ter fuga de capitais? A inflação vai voltar? Não quero dizer que a gente não tenha de ter controle das contas, eu não sei é se faz sentido escandalizar do jeito que um grande grupo está fazendo no momento”.
Velloso lembrou que Paulo Guedes, ministro da Economia, no dia 13 de março, disse que “tinha R$ 5 bilhões para aniquilar a pandemia da Covid-19 e que eram suficientes”, e que no dia 13 de agosto já foram necessários mais de R$ 700 bilhões. “Por que não ‘furar o teto’ com mais R$ 20 bilhões para investimentos em infraestrutura?”, questiona Velloso. “É que Guedes fica sinalizando para o mercado – esse ente que muita gente não sabe direito o que é, mas que tem um peso muito importante no noticiário – que está ‘furando o teto’, ‘dando um jeitinho’. Guedes reclamou que o governo estava sinalizando negativamente com isso e que ele estava muito preocupado”, ironizou Velloso.
“Os investimentos estão tendendo a zero. É difícil entender essa briga pelo cumprimento do teto. Será que não precisa investir? Será que não tem um papel para o setor público desempenhar nessa área?”, questionou o economista. “Os investimentos estão desabando há muito tempo. Temos uma epidemia, a economia desabou, em seguida à sua eclosão. Em última instância, o que nós precisamos é crescer mais, empregar as pessoas, a discussão do teto reapareceu e é uma discussão que tem muito problema em si e não sei se é a coisa mais urgente neste momento, porque o investimento está pagando a conta quando ele poderia ser o motor principal da recuperação da economia nessa situação atípica, extraordinária, que nós estamos vivendo”, afirmou Raul Velloso.
LARA RESENDE: “EUROPA E EUA SEGUIRAM NOVO RECEITUÁRIO DE EXPANSÃO DA BASE MONETÁRIA APÓS A GRANDE CRISE DE 2008”
O economista André Lara Resende destacou que com a pandemia “nós temos uma crise inusitada, diferente das crises que são mais frequentes no capitalismo contemporâneo, que normalmente começam com uma crise financeira e que ameaçam a economia real. Essa crise, como ela teve origem como uma crise sanitária do coronavírus, ela paralisou a economia, o funcionamento da economia real, e com isso provocou uma grande queda do nível de atividade e recessão e ameaça se transformar numa crise financeira. A queda no nível de atividade da economia no segundo trimestre, como Raul mostrou, foi profunda, dramática, não apenas no Brasil, mas em todos os países afetados pelo vírus. É uma recessão, portanto, global e sincronizada. Permanece uma enorme incerteza sobre o desenvolvimento dessa crise, como é que vamos sair dela, especialmente, por causa das incertezas de questões médicas, sanitárias, sobre o vírus. Se haverá um tratamento, se haverá uma vacina, quando haverá, qual é a eficácia da vacina? Portanto, continuamos com um horizonte ainda mais incerto do que o normal em relação ao futuro”.
Segundo Lara Resende, “a reação de políticas públicas nas principais economias do mundo, na Europa, nos Estados Unidos e nas outras economias avançadas seguiu o novo receituário adotado após a grande crise financeira de 2008, a ideia de que é possível expandir a liquidez, basicamente através do que se chamou de afrouxamento monetário (Quantitative easing-QE), com expansão do passivo do Banco Central, que é simplesmente expansão monetária, aumento de liquidez, e redução da taxa básica de juros, que é controlada pelo Banco Central, que é o principal instrumento de política monetária dos bancos centrais hoje”.
“Essa visão de dogmatismo fiscalista, de que é preciso equilibrar as contas públicas sempre e em todas as condições, a curto prazo, para evitar que a relação dívida/PIB passe de um teto mágico, que inicialmente se imaginava perto de 70% do PIB foi colocado completamente de lado”
“O FED [Banco Central dos EUA] logo no primeiro mês da crise multiplicou por três o seu passivo monetário, ou seja, a base monetária, passou de perto de 10% do PIB para quase 30% do PIB americano, responsável, portanto, por 20% do PIB de expansão monetária”.
Segundo o economista, “essa visão de dogmatismo fiscalista, de que é preciso equilibrar as contas públicas sempre e em todas as condições, a curto prazo, para evitar que a relação dívida/PIB passe de um teto mágico, que inicialmente se imaginava perto de 70% do PIB”, foi “colocado completamente de lado”.
“O que impressiona nesse fiscalismo, nesse dogmatismo fiscal que foi dominante, foi hegemônico de certa forma no mundo todo, inclusive, nas instituições e no próprio Fundo Monetário Internacional, que passaram a defender essa visão, alguns dos macroeconomistas das instituições multilaterais e das principais universidades americanas”, foi a de que a “austeridade fiscal seria expansionista”. “Você contrai, você faz uma política fiscal contracionista, mas é compensado pela confiança do setor privado que então investe e você cresceria. Isso foi posto de lado nos últimos anos por alguns países desenvolvidos, como Estados Unidos, na Europa, na Inglaterra, e agora com a pandemia foi colocado completamente de lado”, afirma Lara Resende.
“Com o advento do coronavírus, todos os países do mundo expandiram dramaticamente, diante da recessão dramática, expandiram muito rapidamente suas políticas monetária e fiscal, ou seja, emitiram base, creditaram reservas bancárias”, ressaltou o economista. “Evidentemente incorreram em déficits fiscais extraordinários, porque houve uma queda brutal da arrecadação com a atividade econômica e foram obrigados a fazer gastos emergenciais, e não estamos nem falando ainda em gastos de recuperação da economia. São gastos emergenciais para reduzir de certa forma o grau de sofrimento, do desemprego e da questão da saúde pública”, ressaltou Lara Resende.
“No Brasil, ao contrário, como a política econômica estava baseada na ideia de que a pedra central era o dogma de reequilibrar as contas públicas, o Brasil se viu diante da dramática necessidade de gastos e queda da arrecadação do coronavírus, com uma contradição interna. A própria equipe econômica, o ministro Paulo Guedes, se viu, o que eu chamo claramaente um caso de dissonância cognitiva, porque, ‘olha, o objetivo é equilibrar as contas públicas, reconheço que isso é completamente impossível, não faz o menor sentido, então ele não sabe mais para onde ir, uma enorme contradição”.
“A ideia de que o governo está com dificuldade de financiar a dívida pública é parte do alarmismo promovido pelo sistema financeiro para impedir que o governo atue com a política monetária e fiscal, como deve atuar em um momento como esse”
“Essa discussão no Brasil, no mundo todo, portanto, o dogmatismo diante da crise, essa ortodoxia dogmática, cedeu a uma prática realista, da política. Curiosamente no Brasil, não! Há uma insistência, defendida – não apenas pelo governo, é curioso, mas pelas pessoas que teoricamente teriam posição fora do governo – mas que continua defendendo a ideia de que o governo não pode gastar, e o teto dos gastos é algo completamente inviável”.
“A ideia de que o governo está com dificuldade de financiar a dívida pública é parte do alarmismo promovido pelo sistema financeiro para impedir que o governo atue com a política monetária e fiscal, como deve atuar em um momento como esse”, afirmou o economista.
Segundo Resende, a relação dívida-PIB aparece como um indicador principal dos limites da atuação do Estado na economia.
“Essa nova restrição imposta, que eu chamo de dogmatismo fiscalista, substituiu o papel que a teoria quantitativa da moeda cumpriu durante todo o século 20”.
“Essa tese que não se sustenta, nem logicamente, e já foi desmoralizada empiricamente”, disse o economista, lembrando as reações das principais economias do mundo na Europa, Estados Unidos e outros países, após a crise de 2008 e agora durante a crise sanitária, foram a do chamado “afrouxamento monetário”, com expansão da liquidez, do passivo dos Bancos Centrais e redução da taxa básica de juros. “E, apesar disso, todos eles não tiveram inflação. Pelo contrário, continuaram perigosamente próximo da deflação”, completou.
“Ao contrário do que pretendem os economistas no seu afã de apresentar a economia como uma ciência exata, paralela à física. Essas regras, são regras políticas, são regras desenhadas para o melhor funcionamento da economia”, frisou Lara Resende sobre o teto dos gastos.
Segundo essas teorias, seguidas a ferro e fogo pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, “a ação do estado deve ser sempre minimizada porque ela sempre provoca distorções. Esse liberalismo primário, que procura reduzir o estado ao mínimo, asfixiá-lo, de certa forma, idealmente, para que ele fosse eliminado”. “Uma perda total de realismo. Ela se tornou cada vez mais irrealista, mais inaplicável”, afirmou o economista.
“A única coisa que se discute é o equilíbrio fiscal”, afirma André Lara Resende. “A ideia de suprimir, de asfixiar a capacidade de investimento do Estado é o caminho mais curto para a paralisia completa da economia e é onde nós estamos, num completo atoleiro, onde estamos há várias décadas sem capacidade de sair, sobretudo na últimas década”.
“Essa visão de que o Estado só pode gastar mal, é uma visão suicida. Levarmos o investimento, em especial investimento público, a zero, sobretudo numa situação como essa, onde há recessão e desemprego, o resultado é um país que continua estagnado há quatro décadas”.
“Não é o sistema financeiro que deve definir política monetária e fiscal. Ele funciona sequestrando essas políticas com base em mitos aterrorizantes, apresentando fantasmas de que o mundo vai desabar se restrições criadas não forem respeitadas”, afirmou.
“Quem carrega a dívida brasileira são os próprios brasileiros. Você pode dizer que, ao aumentar a dívida pública, você cria, para o futuro, um problema de distribuição, porque onera os pagadores de impostos e beneficia quem carrega a dívida. Agora, desde que a dívida pública não seja explosiva, isso é perfeitamente equacionável e gerível, principalmente se for um período transitório. Desde que a economia volte a crescer, essa relação [dívida/PIB] se estabiliza”, afirma Lara Resende.
De acordo com o economista, o Banco Central poderia até mesmo financiar integralmente a dívida pública brasileira. “Que efeito tem isso? Nenhum, porque a dívida interna brasileira é carregada essencialmente pelo sistema financeiro, que se refinancia com o Banco Central. Então, o BC poderia dispensar essa intermediação e carregar ele a dívida pública inteira”, afirma.
Segundo Lara Resende, o BC carrega 20% a 25% do PIB em operações compromissadas que poderiam ser substituídas por depósitos remunerados a taxa básica na autoridade monetária. “A dívida pública cairia em 25% do PIB. Não mudou nada, a dívida do setor público consolidado, Tesouro mais Banco Central, continuaria a mesma, mas a dívida do Tesouro cairia, porque depósito remunerado do BC é passivo do BC, não do Tesouro”.
“O Brasil está paralisado nessa armadilha da renda média, ou como se queira chamar um país que há 40 anos praticamente não cresce. Enquanto a renda per capita brasileira é um pouco mais do que o dobro nos últimos 40 anos, a da China multiplicou por 20 vezes. Então, nós temos claramente alguma coisa que está errada na condução da nossa economia, da nossa política econômica”, alertou Lara Resende.
JOSÉ LUIS OREIRO: CORTE NO INVESTIMENTO PÚBLICO LEVOU À DEPRESSÃO ECONÔMICA
O economista e professor da Universidade de Brasília (UNB) José Luis Oreiro apontou que a irracionalidade na discussão fiscal começou em 2014, com a narrativa falsa de que o Brasil tinha uma trajetória insustentável nas contas públicas.
“Essa narrativa [do desequilíbrio fiscal estrutural] venceu como interpretação da causa das crises de 2014 a 2016”, que foi até o presente momento, até o ano de 2020, a maior recessão da economia brasileira desde o início da década de 80. Nós tivemos a mais lenta recuperação cíclica da história brasileira desde 1980”, disse.
“O que explica isto? Basicamente o que explica é o esmagamento do investimento. O investimento público tem um papel muito importante no crescimento de longo prazo”, destacou José Oreiro, acrescentando que o investimento público, “que teve uma redução em 2015, continuou caindo ao longo de 2016, 2017, 2018 e 2019 e, com uma consequência absolutamente previsível, culminou nessa estagnação econômica”.
“O Brasil sai da crise de 2014 a 2016, em que ele tem uma queda acumulada do PIB próximo de 7%, com um crescimento médio no período de 2017 a 2019 de 1% ao ano”.
Oreiro afirma que essa soma de fatores associada à pandemia levará o país a encerrar 2020 com o PIB de 12% a 14% abaixo do que o de 2013. “Ou seja, o Brasil está numa depressão. A gente tem que dizer o nome correto da situação brasileira, não é recessão, nós estamos numa depressão, porque são duas crises muito próximas temporalmente, a de 2014/2016 e a de 2020”.
“Nós temos que nos assegurar que o investimento público seja de qualidade, mas que é absolutamente necessário fazer investimento público, é. Não só como instrumento de política anticíclica, mas também como política de desenvolvimento econômico e de recuperação da infraestrutura brasileira, que se deteriorou muito nos últimos anos”, ressaltou o professor da UnB.
FERNANDO GUIMARÃES COORDENOU PROGRAMA ECONÔMICO LANÇADO PELO MOVIMENTO DIREITOS JÁ!
O coordenador do Direitos Já!, Fernando Guimarães, destacou, em sua apresentação, alguns pontos do documento divulgado pelo movimento que foi elaborado por uma ampla frente de economistas, indicados por vários partidos políticos, com propostas para saídas da crise.
“Surge uma pandemia no momento em que a economia já estava em colapso. nós apontamos que não tem essa dicotomia entre medidas para salvar vidas e salvar a economia”, frisou Fernando. “Buscamos a retomada do crescimento, apontamos para a importância de se conjugar o mercado interno com o crescimento na participação nossa global”. Entre as medidas, ele apontou a recuperação do emprego, a proteção do trabalho, o processo de reindutrialização e investimentos em ciência e tecnologia, entre outras propostas que constam do documento.
Fernando defendeu a prorrogação do programa de renda emergencial de R$ 600 até dezembro de 2020 e o papel do Estado na retomada do crescimento, fortalecendo os serviços públicos e o investimento público na saúde, saneamento, educação, “todos esses setores muito afetados pela própria pandemia”.
Defendeu também “a alteração permanente das regras fiscais, não apenas garantindo mais flexibilidade, mas tornando essas regras anticíclicas, para poder dar um tratamento privilegiado ao investimento público”.
O governo federal corre o risco de paralisar as suas atividades e os serviços públicos em 2021, ano em que a margem para reduzir a despesa discricionária (onde a União tem liberdade para cortar) deve se fechar, provocando um descumprimento do teto de gastos. É o que pensa o economista José Luis Oreiro, professor adjunto do departamento de economia da Universidade de Brasília (UnB). Na entrevista a seguir, ele aponta como o Brasil pode reverter esse cenário.
Os investimentos públicos devem chegar a R$ 19 bilhões em 2020, uma forte queda em relação a 2014. (R$ 99 bilhões). Para onde essa situação nos levará?
A expressiva redução do investimento público ocorrida a partir de 2015 é uma das causas principais tanto da severidade da recessão de 2014-2016, como do ritmo lento de recuperação da economia brasileira, a partir do primeiro trimestre de 2017. Entre todos os componentes da despesa primária da União, o investimento é aquele que possui o maior efeito multiplicador sobre o nível de atividade econômica. Porém, a estratégia de ajuste fiscal implementada por Joaquim Levy em 2015, e continuada por Henrique Meireles e Paulo Guedes, tem sido baseada na contenção do ritmo de crescimento das despesas primárias (que excluem os juros da dívida) por intermédio da contínua redução das despesas discricionárias (que incluem os investimentos, por exemplo), ao invés de priorizar a redução da despesa com os encargos financeiros da dívida pública, por meio de uma redução rápida da taxa básica de juros.
Essa forma de ajuste fiscal, em um cenário em que a demanda privada (consumo e investimento) apresenta um baixo dinamismo – devido ao desemprego elevado, grande capacidade ociosa e alto endividamento das empresas e famílias – traz como consequência uma limitação da capacidade das empresas de aumentarem a sua produção e o nível de empregabilidade, perpetuando, assim, uma situação de desemprego e subutilização da capacidade produtiva.
O que fazer então para o investimento voltar?
Para recuperar o investimento é necessário rever as regras fiscais vigentes no País. Atualmente, temos três regras que definem objetivos para a política fiscal que não são passíveis de serem obtidos simultaneamente. Essas normas são: a regra de ouro, que exige que o governo só pode se endividar para pagar despesas de capital; a regra de resultado primário, a qual define um resultado primário para o governo central; e a regra do teto de gastos, que define um valor máximo para a despesa primária da União. Veja que essas regras têm por objetivo controlar a composição do gasto primário (a regra de ouro), o tamanho do gasto primário (o teto dos gastos) e a diferença entre o gasto primário e a receita do governo.
O problema é que, em um ambiente com a economia em crise, existe um conflito entre esses objetivos. Quando o PIB se contrai, como ocorreu no período 2014-2016, a receita tributária se reduz, o que piora o resultado primário. Para cumprir a meta de primário, o governo então reduz o investimento público, dado que ele não dispõe de instrumentos para reduzir a despesa obrigatória, a qual cresce de forma autônoma a um ritmo de aproximadamente 3% ao ano, devido a uma série de mecanismos, muitos dos quais são normas constitucionais. A contração do investimento público, contudo, acentua a queda do PIB e, dessa forma, reforça a queda da arrecadação de impostos.
A combinação de queda de arrecadação tributária com redução da despesa de capital leva ao descumprimento da regra de ouro. Em suma, o arcabouço institucional das regras fiscais existentes atualmente no Brasil faz com que qualquer tentativa de ajuste fiscal tenha um viés contra o investimento público. Isso precisa ser mudado.
Aumentar os investimentos públicos hoje poderia descontrolar as despesas?
Não, basta você coordenar o aumento do investimento com uma redução da taxa de juros Selic, o que diminuiria os gastos com os serviços da dívida.
E que acha da possibilidade do fim da regra de ouro?
A regra de ouro precisa ser eliminada pelo fato de que o governo não dispõe de instrumentos para cumpri-la. Isso porque a forma mais direta para o governo cumprir a regra de ouro é por intermédio da redução das despesas correntes, o que não é possível, pois a maior parte delas é de natureza obrigatória como, por exemplo, as despesas previdenciárias e com os salários do funcionalismo público.
Durante o governo Temer (2016-2017), a solução encontrada foi aumentar as receitas de capital com a devolução dos empréstimos do Tesouro ao BNDES e com os ganhos de capital sobre as reservas internacionais. Em 2019, essa solução não foi suficiente para “tapar o buraco” da regra de ouro, obrigando o governo a pedir ao Congresso Nacional um “crédito suplementar”, que nada mais é do que uma simples autorização para realizar gastos correntes numa magnitude maior do que a receita tributária, não havendo nenhuma concessão de crédito nessa operação.
O cumprimento da regra de ouro em 2017 e 2018 exigiu, portanto, uma redução do crédito do BNDES para o financiamento do investimento, o que certamente contribuiu para a queda do investimento do setor privado, reduzindo o ritmo de recuperação da economia a partir de 2017. Como as despesas primárias ainda estão abaixo do teto, segue-se que o esmagamento do investimento público após 2015 não se deveu ao teto de gastos, mas resultou do fato de que a regra de resultado primário impõe uma política fiscal eminentemente pró-cíclica, ou seja, obriga o governo a reduzir os gastos (de investimento) quando a economia se contraí. Um completo “nonsense” (situação sem sentido).
Como você avalia o encaminhamento que o governo vem dando a essa situação?
A equipe econômica do governo, apoiada por alguns economistas, converteram-se em defensores entusiastas do liquidacionismo e acham que a solução é reduzir as despesas obrigatórias, cortando os salários dos servidores públicos e reajustando os benefícios previdenciários a um ritmo menor do que a taxa de inflação. É a fórmula do ajuste fiscal perpétuo ou da “política econômica enxuga gelo”: se o ajuste fiscal feito até agora não conseguiu resolver o desequilíbrio fiscal é porque o ajuste ainda não foi da magnitude suficiente. O resultado disso será apenas uma nova rodada de contração da demanda agregada, a qual poderá levar a uma nova recessão, levando o País para o desastre econômico e social.
Quais os problemas que você vê hoje no teto de gastos?
O problema maior da regra do teto é que a mesma é uma norma constitucional que não possui cláusula de escape, ao contrário da regra de resultado primário, a qual é definida na LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] e, portanto, factível de ser mudada pelo Congresso a qualquer momento, ou da regra de ouro que permite que o Congresso autorize o governo a descumprir a mesma.
Mantido o ritmo de crescimento das despesas obrigatórias e dado que o espaço para a redução das despesas discricionárias se esgota em 2019 ou 2020; segue-se que o cumprimento do teto de gastos será inviável em 2021, o que irá impor um shutdown (fechamento) do governo com a interrupção dos serviços públicos fundamentais para a população. Será um caos social de proporções comparáveis à Queda do Império Romano!
Qual é a saída então?
O teto precisa ser flexibilizado. Em primeiro lugar é necessário permitir que as despesas primárias do governo apresentem um crescimento real no mínimo igual ao crescimento da população, atualmente em torno de 0,8% ao ano. Em segundo lugar, é necessário estabelecer uma cláusula de escape que permita a adoção de uma política fiscal anti-cíclica nos períodos em que o crescimento estiver muito baixo, por exemplo, abaixo de 1% em termos anualizados. Em terceiro lugar, é necessário retirar o investimento público do teto de gastos, ou seja, é preciso redefinir o teto de forma a limitar apenas o crescimento das despesas correntes, pois não faz sentido limitar o crescimento do investimento público, ainda mais no contexto de um país que precisa desesperadamente de recuperar sua infraestrutura para crescer de forma sustentada.
Graduado em Economia pela FEA-USP. Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY. Foi economista, gestor de fundos e CEO em instituições do mercado financeiro em São Paulo. É professor de economia na FGV-SP desde 2002. Brasil, uma economia que não aprende é seu último livro. Conselheiro da FIESP e Economista-chefe do Banco Master
"A família é base da sociedade e o lugar onde as pessoas aprendem pela primeira vez os valores que lhes guiam durante toda sua vida". (Beato João Paulo II)