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Nas ultimas semanas, em função das perspectivas de elevação brutal do déficit primário do setor publico para o ano de 2020 em função da crise do coronavírus, muitos economistas – eu incluso – passaram a defender a monetização (ainda que parcial) desse déficit como forma de atenuar o aumento da relação dívida pública/PIB. Essa posição não tem sido compreendida por segmentos importantes da sociedade brasileira que acreditam que “imprimir dinheiro” irá trazer de volta o demônio da inflação alta, o qual levou muitos anos para ser exorcizado do Brasil. Acredito que no debate brasileiro atual existam muitos erros conceituais e opiniões pré-concebidas, o que torna difícil um debate sério sobre o tema. Espero poder, neste artigo, clarificar alguns pontos.

Primeiramente, qual a natureza da inflação, ou seja, qual a causa da elevação sustentada do nível geral de preços? Uma explicação bastante aceita entre os economistas heterodoxos é que a inflação nada mais é do que o resultado de um desequilíbrio a respeito da porção da renda nacional que cada classe ou grupo social deseja se apropriar. Considerando uma economia na qual a renda seja dividida entre salários e lucros, um conflito distributivo surge quando a soma da fração da renda nacional que os trabalhadores desejam se apropriar na forma de salários e a fração da renda nacional que os empresários desejam se apropriar na forma de lucros for maior do que um. Nessas condições, a inflação atua como um mecanismo que reduz as proporções da renda nacional efetivamente apropriadas por cada grupo de maneira a fazer com que a soma de ambas seja compatível com a renda nacional existente. Para que essa compatibilização funcione, contudo, é necessário que a inflação esperada por um e/ou outro grupo social seja inferior a inflação efetivamente realizada, ou seja, que ocorra uma surpresa inflacionária (Blecker e Setterfield, 2019, pp. 257-261). Se as parcelas que cada grupo social deseja se apropriar da renda nacional não se alterarem; segue-se que o papel da inflação como mediador do conflito distributivo irá exigir uma aceleração da inflação, na medida que cada grupo social reajustar suas expectativas de inflação à luz dos desapontamentos ocorridos em suas expectativas. Nessas condições, a economia irá convergir para uma hiper-inflação num período finito de tempo.

A estabilidade da taxa de inflação exige, portanto, que as proporções desejadas da renda nacional sejam compatibilizadas de forma a que sua soma seja igual a um. Como essa coordenação pode ser feita? Existem duas formas. Em sociedades nas quais a negociação salarial é feita de forma altamente centralizada, por intermédio de grandes sindicatos de âmbito nacional, é possível realizar uma política de rendas na qual os representantes dos trabalhadores e dos empresários, em conjunto com o governo, se comprometam em moderar as demandas salariais em troca da manutenção do nível de emprego e/ou de compromissos de realização de investimentos por parte das empresas (A esse respeito ver Calmfors e Driffil, 1988). Esse é o modelo escandinavo de capitalismo, ou seja, o modelo adotado em países como Suécia, Dinamarca e Noruega; também conhecido como modelo neo-corporativista.

Em países como o Brasil cuja estrutura sindical é descentralizada e pulverizada entre centenas de sindicatos, tal modelo não é factível. Dessa forma, a coordenação entre as proporções que cada grupo social deseja se apropriar da renda nacional deve ser feita de maneira indireta, por intermédio da política monetária: O Banco Central deverá elevar a taxa básica de juros ao nível necessário para reduzir o nível de atividade econômica até um ponto no qual firmas e trabalhadores aceitem “voluntariamente” diminuir suas participações na renda nacional. A taxa de desemprego que garante essa coordenação é a NAIRU (non accelerating inflation rate of unemployment, em português, a taxa de desemprego para a qual a inflação não se acelera).

O cálculo da NAIRU não é simples e os economistas divergem muito entre si a respeito da metodologia correta de cálculo da mesma. No entanto, podemos ter uma ideia de se a economia está operando acima ou abaixo da NAIRU por intermédio do comportamento da inflação no médio-prazo (no curto-prazo a inflação é altamente volátil, sendo muito afetada por fatores sazonais e choques de oferta). Se a inflação estiver em trajetória de queda no médio-prazo então podemos ter certeza que a economia está operando com uma taxa de desemprego acima da NAIRU, o que permite que o Banco Central reduza a taxa de juros no intuito de estimular a atividade econômica e a geração de empregos. Essa era a situação que o Brasil se encontrava em 2019: desde meados do ano passado o BCB estava reduzindo a taxa selic porque o comportamento da inflação sinalizava de forma clara que a economia estava operando com uma taxa de desemprego acima da NAIRU. Em dezembro de 2019 a taxa de desemprego estava um pouco abaixo de 12% da força de trabalho.

Em março a economia brasileira foi atingida pela pandemia do coronavirus. As medidas de distanciamento social necessárias a diminuição do ritmo de transmissão do vírus irão impor uma queda do nível de atividade econômica que poderá chegar a casa dos dois dígitos. A taxa de desemprego deverá, portanto, se elevar de forma substancial em 2020, podendo ultrapassar 20% da força de trabalho. Nesse cenário a inflação esperada para 2020 já se reduziu para 2%, com alguns analistas prevendo inclusive a possibilidade de uma deflação.

A queda do nível de atividade associada aos gastos com os programas de renda emergencial deverão resultar num déficit primário superior a R$ 500 bilhões. Considerando um volume de pagamento de juros da dívida pública da ordem de R$ 300 bilhões ao longo de 2020 teremos um déficit nominal de aproximadamente R$ 800 bilhões, ou 11% do PIB. A Constituição Brasileira proíbe que o Banco Central financie o Tesouro Nacional, ou seja, o Tesouro não pode vender títulos públicos diretamente para o Banco Central; mas apenas para o “mercado”, constituído por empresas financeiras bancárias e não-bancárias, bem como investidores individuais por intermédio do “Tesouro Direto”. Pelas regras constitucionais atualmente em vigor o Banco Central só pode comprar títulos públicos que estejam na carteira dos bancos comerciais (Obs: a PEC 10/2020 irá flexibilizar essa exigência durante o período de calamidade pública)

Mas consideremos que essa restrição constitucional não existisse e que o Banco Central pudesse comprar títulos públicos diretamente do Tesouro. Nesse caso, o Tesouro poderia escolher como se financiar, ou seja, se por intermédio da venda de títulos para o “mercado” ou para o Banco Central. A vantagem de vender títulos para o Banco Central é que este faz parte do “governo geral” de tal maneira que os títulos públicos são contabilizados como “passivo” do Tesouro, mas “ativo” do Banco Central. Nessas condições o endividamento líquido do “governo geral” não se altera, pois ativos e passivos se cancelam. Se a venda for para o mercado, então a dívida do “governo geral” com a sociedade irá aumentar na mesma magnitude da emissão de títulos.

A pergunta que devemos nos colocar agora é: qual o impacto do financiamento monetário sobre a taxa de inflação? Com base na teoria de inflação que foi exposta no início deste artigo, o financiamento monetário do déficit só terá impacto inflacionário relativamente ao financiamento pela emissão de títulos se (i) produzir um aumento maior da demanda agregada e (ii) esse aumento da demanda agregada for suficientemente grande para fazer com que a economia opere com uma taxa de desemprego abaixo da NAIRU.

Por que razão o financiamento monetário do déficit público geraria um aumento da demanda agregada maior do que o financiamento por intermédio da venda de títulos no mercado? A resposta simples a essa pergunta é que o financiamento monetário acarreta um aumento da base monetária, dado que a aquisição de títulos públicos pelo Banco Central aumenta o ativo dessa instituição, impondo assim um aumento do seu passivo. O passivo do Banco Central é constituído pela Base Monetária, pela conta única do tesouro e pelo patrimônio líquido do Banco Central. No momento em que o Banco Central pagar ao Tesouro pela compra dos títulos públicos, o valor referente a essa compra será creditado na conta única do tesouro, aumentando o passivo do Banco Central, mas ainda não a base monetária. A medida que o Tesouro precisar fazer os pagamentos de salários, fornecedores e dos programas de assistência social então o valor desses pagamentos será debitado da conta única do tesouro e creditado na conta de reservas bancárias, a qual junto com o papel moeda em circulação, constitui a base monetária. Dessa forma, a venda de títulos do Tesouro para o Banco Central termina por aumentar a base monetária.

Supondo que a demanda por reservas bancárias não se altere durante esse processo, o aumento da quantidade de reservas deverá levar a uma redução da taxa de juros, a não ser que o Banco Central faça alguma operação de esterelização. A redução dos juros tem impacto positivo na demanda agregada e poderia, se suficientemente grande, reduzir a taxa de desemprego abaixo do patamar da NAIRU. Nessas condições a inflação iria se acelerar.

A pergunta a ser feita agora é a seguinte: Esse efeito, nas condições atuais da economia brasileira, é suficientemente grande para produzir uma aceleração da inflação? A taxa de juros selic está atualmente em 3,75% a.a. Na ausência de operações de esterelização (voltarei a esse tópico mais a frente), ela pode eventualmente cair a zero. O efeito dessa redução da taxa nominal de juros sobre a demanda agregada vai depender, contudo, da taxa de inflação. Se a inflação fechar o ano de 2020 em 2%, então teremos um juro real de, aproximadamente, -2%. Se a inflação for mais baixa, digamos 1%, então o juro real será de apenas -1%., um valor 50% menor. Além disso, parece pouco provável que, numa situação de queda acentuada do nível de atividade econômica, a demanda agregada se mostre muito sensível a variações da taxa de juros. Isso significa que o valor da taxa neutra (real) de juros, num quadro fortemente recessivo, pode inclusive ser negativo. Dessa forma, me parece pouco provável que o financiamento monetário do déficit publico, durante o período em que durar o estado de calamidade pública, tenha algum efeito sobre a taxa de inflação.

O raciocínio exposto acima se baseia na hipótese implícita de que o Banco Central não irá esterelizar o aumento da base monetária decorrente da compra direta de títulos do tesouro. Mas essa opção está disponível ao BCB por intermédio das operações compromissadas. Nesse caso, o BCB pode enxugar a liquidez criada por intermédio de uma venda de títulos públicos para os bancos com compromisso de recompra. Ao fazer isso, o BCB terá atuado, na prática, apenas como um intermediário na venda de títulos do Tesouro para o “mercado”; ou seja, ao invés do Tesouro vender diretamente seus títulos para o mercado, ele vende para o BCB que posteriormente repassa os mesmos para o mercado por intermédio das operações compromissadas. Mas nesse caso qual seria a vantagem para o Tesouro? A vantagem é que as operações compromissadas tem um prazo de maturidade mais curto do que os títulos da dívida pública. Isso significa que, em geral, as taxas de juros pagas pelas operações compromissadas são mais baixas do que as taxas de juros pagas sobre os títulos da dívida pública; ou seja, a atuação do BCB no mercado de títulos públicos, mesmo apenas como intermediário, pode reduzir o custo médio de rolagem da dívida pública! Esse ganho pode ser significativo em momentos de maior percepção de incerteza, como o que estamos passando atualmente, quando o aumento do prêmio de liquidez distorce a curva de juros, produzindo uma forte elevação dos juros de longo-prazo relativamente a taxa de juros selic. 

A severidade da queda do nível de atividade econômica, contudo, torna pouco provável, para não dizer impossível, que a inflação se acelere por conta da redução da taxa selic para 0% como resultado do financiamento monetário do déficit público. O único fator que poderia levar, nessas condições, a uma aceleração da inflação seria uma desvalorização muito forte da taxa nominal de câmbio, originada a partir da redução do diferencial de juros. Com efeito, numa economia que possui a conta de capitais aberta como é o caso do Brasil, a redução dos juros domésticos relativamente aos praticados no resto do mundo deverá levar a uma saída de capitais do país e, dessa forma, a uma desvalorização da taxa de câmbio.

O efeito da desvalorização cambial sobre a inflação vai depender de dois fatores (a) da magnitude da desvalorização e (b) do efeito pass-through do câmbio para os preços. A evidência empírica disponível mostra que a magnitude de (b) depende do nível de atividade econômica, de forma que em períodos recessivos o efeito tende a ser bastante reduzido.

Quanto a magnitude da desvalorização ela pode ser reduzida por intervenções no mercado de câmbio seja por (i) venda de reservas internacionais e/ou operações de swap cambial e/ou (ii) imposição de controles (temporários) a saída de capitais do país. Eu particularmente sou favorável a imposição de uma quarentena a saída de capitais do Brasil, algo que a legislação brasileira sobre o tema, datada de 1967, permite em situações excepcionais como forma de garantir o equilíbrio do balanço de pagamentos. Uma vez adotada essa quarentena, o BCB terá as mãos livres para reduzir a selic para 0% a.a, o que, por si só, irá reduzir muito o custo fiscal das medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia. O financiamento monetário do déficit público, contudo, exige uma PEC que permita explicitamente ao BCB adquirir títulos do tesouro no mercado primário. 

Em suma, não vejo nenhuma razão pela qual, nas condições atuais da economia brasileira, o financiamento monetário do déficit público possa levar a uma aceleração da inflação. Está claro que não se trata de uma política que possa ser mantida indefinidamente. Uma vez que a taxa de desemprego tenha retornado para o nível dado pela NAIRU, o governo deverá retornar a prática de financiar seu déficit por intermédio da venda de títulos no mercado. Mas aqui é importante não ser excessivamente otimista: tudo indica que a taxa de desemprego no Brasil e no mundo irá permanecer por muito tempo em patamares bastante elevados. A recuperação não será em forma de V, mas assumirá o formato do símbolo da NIKE. Dessa maneira, a política econômica no Brasil, mais do que nunca, não pode ter seus rumos ditados pelos preceitos da ortodoxia convencional. Este é o momento e a hora para a boa heterodoxia.

Referências

Calmfors, L; Driffill, J. (1988). Centralization of wage bargaining”. Economic Policy, n.6.

Blecker, R; Setterfield, M. (2019). Heterodox Macroeconomics: models of demand, distribution and growth. Edward Elgar: Aldershot.