José Luis Oreiro*
Um dos argumentos da sabedoria convencional contra a imposição de controles de capitais na economia brasileira – a qual tem sido feita de forma bastante tímida por parte do governo brasileiro nos anos recentes – é que os mesmos tornariam mais difícil a captação de recursos no exterior, ou seja, a captação de poupança externa. Dada a notória escassez de poupança doméstica no Brasil, a poupança externa seria então condição necessária para o financiamento do investimento produtivo da economia brasileira, atualmente em torno de 20% do PIB. Além disso, continua a sabedoria convencional, para que o governo possa aumentar a taxa de crescimento do PIB que é compatível com a estabilidade da taxa de inflação para um patamar de 5% a.a é necessário um aumento significativo da taxa de investimento (para algo próximo a 24% do PIB), o que reforça ainda mais a dependência da economia brasileira com respeito a poupança externa. Dessa forma, a política mais inteligente a ser adotada pelo governo seria remover todos os obstáculos a captação de recursos no exterior por parte de residentes no Brasil. Sendo assim, os controles de capitais ainda existentes na economia brasileira deveriam ser plenamente abolidos com a implantação da plena-conversibilidade do Real. Nessas condições, argumentam os filósofos da sabedoria convencional, a economia brasileira poderia captar com facilidade uma poupança externa entre 4 a 5% do PIB, sem maiores riscos para o equilíbrio inter-temporal do balanço de pagamentos.
Esse raciocínio da sabedoria convencional se apoia em duas hipóteses fundamentais. A primeira é que a poupança externa e a poupança doméstica são complementares, ao invés de substitutas. A segunda hipótese é que os controles de capitais não são capazes de afetar a trajetória da taxa real de câmbio e, dessa forma, o montante de financiamento externo requerido pela economia brasileira; uma vez que a taxa real de câmbio de equilíbrio depende da relação entre a taxa de investimento e a taxa de poupança doméstica numa pequena economia aberta. Sendo assim, uma desvalorização permanente da taxa real de câmbio só seria possível por intermédio de um aumento permanente da poupança doméstica. Dessa forma, variações da taxa real de câmbio seriam, em geral, precedidas por variações na poupança doméstica.
A sabedoria convencional acredita que a poupança é logica e temporalmente anterior ao investimento de tal forma que um aumento deste requer um aumento prévio da taxa de poupança da economia. Nesse contexto, para que ocorra um aumento do investimento é necessário que ocorra um aumento da poupança doméstica (privada + pública) e/ou um aumento da poupança externa. Se o setor privado doméstico ou o setor público não estiverem dispostos a aumentar a sua taxa de poupança; então o investimento só poderá aumentar em função de um aumento da poupança externa, ou seja, do déficit em conta-corrente.
A introdução de controles de capitais dificultaria esse processo ao tornar menos atrativa a compra de ativos domésticos por residentes no exterior. Dessa forma, o déficit em conta-corrente requerido para o aumento do investimento produtivo não poderia ser financiado pela entrada de capitais, ou seja, o superávit da conta de capitais do balanço de pagamentos seria insuficiente para o financiamento integral do déficit em conta-corrente. Nesse caso, haveria um déficit no balanço de pagamentos, o qual resultaria ou numa redução das reservas internacionais, caso o Banco Central decida garantir a estabilidade da taxa real de câmbio, ou numa forte desvalorização da taxa real de câmbio, caso a autoridade monetária não intervenha no mercado cambial. Neste segundo cenário, a desvalorização súbita da taxa de câmbio produziria uma forte elevação da taxa de inflação, obrigando o Banco Central a fazer uma grande elevação da taxa de juros de maneira a manter a inflação dentro da meta definida pelo Conselho Monetário Nacional. O efeito final da introdução dos controles de capitais seria, portanto, uma forte recessão produzida pelo ajustamento da taxa de juros resultante da aceleração inflacionária induzida pelo desequilíbrio do balanço de pagamentos.
Esse raciocínio da sabedoria convencional é falacioso. Em primeiro lugar, como já foi demonstrado por Keynes (1936) e Kaldor (1956), o investimento precede lógica e temporalmente a poupança tanto no curto como no longo-prazo[1]. Dessa forma, o investimento, sempre e em todo lugar, determina um volume equivalente de poupança agregada. A repartição do volume de poupança entre poupança doméstica e poupança externa depende, criticamente da taxa real de câmbio. Quanto mais apreciada for a taxa real de câmbio, maior será o salário real e, portanto, a participação dos trabalhadores na renda nacional. Como a propensão a poupar a partir dos lucros é maior do que a propensão a poupar a partir dos salários, a apreciação da taxa real de câmbio reduz a poupança agregada do setor privado. Supondo a validade da condição de Marhall-Lerner, a apreciação da taxa real de câmbio irá resultar numa redução das exportações líquidas a médio e longo-prazo, produzindo assim um aumento do déficit em conta-corrente, ou seja, um aumento da poupança externa. Isso posto, a apreciação da taxa real de câmbio resulta numa substituição de poupança doméstica por poupança externa (Bresser-Pereira, 2009), dando origem a necessidade de atração de capitais externos (isto é, superávit na conta capital) para o equilíbrio do balanço de pagamentos, a qual exige o relaxamento dos controles de capitais. Em outras palavras, a poupança externa e a captação de recursos no exterior só são necessários para o equilíbrio do balanço de pagamentos se a taxa real de câmbio estiver sobre-valorizada.
No que se refere a segunda hipótese do modelo da sabedoria convencional deve-se ressaltar que a mesma se apoia na inelasticidade do produto potencial com respeito a demanda agregada. Nesse contexto, um aumento da absorção doméstica – por exemplo, devido a um aumento dos gastos do governo – não pode ser atendido por um aumento do produto real no longo-prazo uma vez que o mesmo seria igual ao produto potencial, determinado pela tecnologia e pela dotação de fatores da economia em consideração. Dessa forma, o equilíbrio no mercado de bens exige uma redução da demanda externa pela produção doméstica, o que só pode ser viabilizado por intermédio de uma apreciação da taxa real de câmbio. Mutatis mutandis, uma redução da absorção doméstica – devida, por exemplo, a uma redução do consumo privado ou dos gastos públicos – irá induzir uma depreciação da taxa real de câmbio para o re-equilíbrio no mercado de bens.
No que se refere a hipótese de inelasticidade do produto potencial com respeito a demanda agregada, a boa teoria econômica e a evidência empírica (Oreiro et al, 2010; Libanio 2009) mostram que a mesma é igualmente falaciosa. Com efeito, tal como ressaltado por Kaldor (1988), tanto a acumulação de fatores de produção como o ritmo de progresso tecnológico dependem, no longo-prazo, do ritmo de crescimento da demanda agregada autônoma. Isso deve-se ao fato de que (i) o investimento em capital fixo responde positivamente as expectativas de crescimento da demanda dos empresários em função do efeito acelerador; (ii) a taxa de crescimento da força de trabalho responde ao crescimento da demanda por trabalho por intermédio de mudanças nas horas trabalhadas no curto-prazo, da taxa de participação no médio-prazo e do tamanho da população no longo-prazo; (iii) o ritmo de crescimento da produtividade do trabalho responde ao crescimento da produção devido a existência de economias estáticas e dinâmicas de escala consubstanciadas na assim chamada lei de Kaldor-Verdoorn.
Sendo assim, é muito mais razoável tratar a taxa real de câmbio como uma variável exógena do ponto de vista do processo de acumulação de capital. Dessa forma, a introdução de controles de capitais torna-se uma política necessária para permitir a administração da taxa real de câmbio por parte dos formuladores de política econômica. Se a intensidade dos controles de capitais for adequada, o governo poderá administrar a taxa real de câmbio, colocando-a no valor requerido para eliminar o déficit em conta-corrente. Isso, porém, pode não ser suficiente para induzir um crescimento econômico acelerado. Se a economia sofrer de doença holandesa, a taxa real de câmbio requerida pelo setor industrial para se manter competitivo com respeito ao resto do mundo será maior (ou seja, mais depreciada) do que a taxa real de câmbio requerida para o equilíbrio em conta-corrente do balanço de pagamentos (Bresser-Pereira, 2009). Nesse caso, além dos controles de capitais, o governo deverá introduzir um imposto sobre as exportações de bens primários.
Referências Bibliográficas.
BRESSER-PEREIRA, L.C. (2009). Globalização e Competição. Campus: Rio de Janeiro.
KALDOR, N. (1956). “Alternative Theories of Distribution”. Review of Economic Studies, vol. XXIII.
—————– (1988). “The Role of Effective Demand in the Short and Long-Run Growth” In: Barrére, A. (org.). The Foundations of Keynesian Analysis. Macmillan Press: London.
KEYNES, J.M. (1936). The General Theory of Employment, Interest and Money. Macmillan Press: Londres.
Libanio, G. (2009) “Aggregate demand and the endogeneity of the natural rate of growth: evidence from Latin American Countries”. Cambridge Journal of Economics , 33.
OREIRO, J.L; NAKABASHI, L., SOUZA, G.J. (2010). “A economia brasileira puxada pela demanda agregada”. Revista de Economia Política, Vol. 30, N.4.
* Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IC do CNPq, Diretor de Relações Institucionais da Associação Keynesiana Brasileira e Líder do Grupo de Pesquisa “Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento” cadastrado no CNPq. E-mail: joreiro@unb.br.
[1] No curto-prazo a poupança agregada total se ajusta ao investimento por intermédio de variações do nível de emprego e do grau de utilização da capacidade produtiva. No longo-prazo, o ajuste se dá por variações da participação dos lucros na renda nacional.