O jornalista Cyro Andrade publicou um belo artigo no Valor de hoje (https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2019/09/20/investigacao-mostra-que-vies-ideologico-influencia-economistas.ghtml) a respeito de como o viés ideológico influencia ideias e julgamentos de economistas. O artigo foi baseado em trabalho empírico conduzido pelos economistas Mohsen Javdani, professor na Universidade de British Columbia, no Canadá, e Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra no qual se constatou que não faltam evidências de que o viés ideológico, entendido como inclinação preconcebida para determinadas valorações cognitivas e normativas, influencia ideias e julgamentos dos economistas, indistintamente, sejam ortodoxos ou heterodoxos. Cyro entrevistou três economistas (José Luis Oreiro da UnB, Silmão Silber da FEA/USP e o José Roberto Afonso do IDP) e dois cientistas políticos (Marcos Mello do Insper e Marco Aurélio Mello) para avaliar os seus posicionamentos sobre a questão em debate. Os resultados do estudo de Javdani e Ha-Joon Chang pode ser visualizado na figura abaixo:
De início é necessário definir o que é “visão de mundo”. O economista austríaco Joseph Schumpeter, no seu monumental “History of Economic Analysis” criou o termo “visão de mundo”, o qual para ele se referia ao “ato cognitivo pré-analítico” que define um conjunto coerente de fenômenos que deve ser objeto de análise sistemática. A visão de mundo, portanto, antecede a análise econômica propriamente dita pois fornece a “matéria prima” para o esforço analítico.
Minha visão de mundo foi moldada pela minha herança familiar, cultural e religiosa. Como é de conhecimento público, sou um economista pós-keynesiano e também um economista desenvolvimentista. Minha adesão ao Keynesianismo e ao desenvolvimentismo se deve, em primeiro lugar, ao ambiente familiar no qual fui criado. Eu nasci no início da década de 1970, no contexto da Guerra Fria, e de uma família de camponeses pobres e católicos que imigrou da Península Ibérica para o Brasil no início dos anos 1950. Eu cresci num mundo onde havia o temor concreto de uma “revolução socialista mundial”, o que certamente me colocava ideologicamente do lado “capitalista”. Mas minha origem social, combinada com minha forte formação católica, me fez perceber desde cedo as mazelas do capitalismo, notadamente a sua incapacidade de gerar um volume elevado de emprego e a injusta distribuição de renda, as quais eu via que funcionavam como combustível para alimentar a propagação do comunismo no mundo. Por isso, desde a minha adolescência eu me considerava um reformista, ou seja, eu aceitava o capitalismo como o mal menor, mas achava que a intervenção do Estado na economia era absolutamente necessária para “salvar o capitalismo dos capitalistas”. Paralelamente a isso, o fato de ser filho de mãe portuguesa e pai espanhol me faziam refletir sobre o porquê das grandes potências europeias do século XVI terem ficado para trás em termos econômicos com relação a Holanda e ao Reino Unido. A resposta para mim era bastante clara: Portugal e Espanha não foram capazes de fazer (até meados do século XX) a sua Revolução Industrial, razão pela qual foram superados por países que, no século XVI, podiam ser considerados quase como “povos bárbaros” pelos Ibéricos (Os espanhóis daquela época chamavam os ingleses de “mendigos do mar”). Dessa forma, eu era, embora ainda não o soubesse, um “desenvolvimentista”. Em resumo, antes de ingressar no curso de ciências econômicas na UFRJ em 1989 eu já havia elaborado a minha visão de mundo, que se assentava nas seguintes bases: (i) O capitalismo é um sistema econômico que não pode ser deixado funcionar livremente, sem a orientação do Estado, pois possui falhas sistêmicas em termos de geração de emprego e distribuição de renda; e (ii) a indústria é a fonte, não apenas do progresso econômico dos países, mas também do seu poder geo-politico (os militares brasileiros deveriam prestar mais atenção nesse ponto).
Pouco antes de começar o curso de ciências econômicas na UFRJ eu havia lido o livro “O Novo Estado Industrial” de John Kenneth Galbraith, o qual se encaixava precisamente na minha “visão de mundo”. Foi Galbraith que me apresentou as ideias do economista britânico John Maynard Keynes. Foi então que me tornei, no meu íntimo, um “economista” (ainda faltava fazer o curso de economia, rs) Keynesiano. Ao iniciar o curso de ciências econômicas na UFRJ eu fui logo comprar a “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda” de Keynes para ler. Confesso que entendi muito pouco na primeira leitura, até porque a “Teoria Geral” não é um livro texto para estudantes de economia, mas um livro escrito para os colegas economistas do próprio Keynes. No esforço para procurar entender a Teoria Geral me deparei, em 1991, com um texto para discussão do Professor Fernando Cardim de Carvalho, na época professor da Faculdade de Economia da UFF, cujo título era “Fundamentos da escola pós-keynesiana: a teoria de uma economia monetária”. A leitura desse texto marcou a minha adesão completa ao “programa de pesquisa” (no sentido de Lakatos) pós-keynesiano, o qual me mantenho fiel até hoje e que orientou meus estudos e pesquisas desde então.
Voltando a questão do papel do Estado. Como economista keynesiano e desenvolvimentista acho que o Estado tem um papel fundamental tanto na manutenção de um elevado nível de renda e de emprego, como também na obtenção de uma distribuição de renda mais justa e no desenvolvimento econômico de países atrasados como era, e infelizmente ainda é, o caso do Brasil. Isso não significa, obviamente, suprimir o mercado, adotando uma economia planificada ao estilo soviético. Esse nível de intervenção do Estado na economia se mostrou historicamente um desastre. O mercado é necessário para impulsionar o espírito inovador e empreendedor da sociedade; mas a “busca do interesse próprio” precisa ser regulada, do contrário grandes crises econômicas, como as crises de 1929 e 2008, podem ocorrer com cada vez mais frequência. No caso dos países ditos em desenvolvimento, o Estado precisa criar mercados que ainda não existem devido a combinação perversa de “externalidades pecuniárias e tecnológicas” com um baixo nível de estoque de capital por trabalhador. Nessas condições, a economia pode ficar presa numa “armadilha de pobreza” porque o baixo nível de estoque de capital convive lado a lado com lucros extremamente baixos, o que impede que o desenvolvimento ocorra espontaneamente por intermédio dos “mecanismos de mercado”. Essa foi a lógica que levou Getúlio Vargas a construir – com financiamento dos EUA em troca da entrada do Brasil, ao lado dos aliados, na Segunda Guerra Mundial – a Companhia Siderurgia Nacional. Essa também foi a lógica da “planificação do desenvolvimento econômico” embutida do Plano de Metas de JK.
Essa questão ocupa lugar central nas minhas reflexões, mesmo quando escrevo artigos altamente abstratos (e com um monte de equações matemáticas, rs) para a publicação em revistas científicas no Brasil e no exterior. De uma certa forma, tudo o que escrevo, os cursos que eu ministro na graduação e na pós-graduação e meu posicionamento no debate público no Brasil estão embebidos dessa “visão” sobre o papel do Estado na economia.
Minha adesão ao Keynesianismo e ao desenvolvimentismo, como disse anteriormente, reflete minha “visão de mundo”, ou seja, aquilo que no dia a dia se chama de “convicções políticas pessoais”. Nenhum pesquisador – ainda mais no campo das ciências sociais, como é o caso da economia – é “ideologicamente neutro”. Aliás Karl Popper, um dos grandes filósofos da ciência, já dizia que a isenção é uma propriedade do método científico, não do cientista. E qual é o método científico? Elaborar teorias ou hipóteses a respeito do funcionamento do mundo (ou de algum aspecto dele), extrair dessas hipóteses proposições que possam ser submetidas ao teste empírico e proceder ao teste dessas proposições. Aquelas teorias ou hipóteses que apresentarem proposições que não forem rechaçadas pela confrontação com os fatos podem ser aceitas como “uma meia verdade temporária”, como dizia meu ex-professor de Filosofia Econômica, Antônio Maria da Silveira, infelizmente já falecido. Não existem verdades absolutas na ciência, muito menos nas ciências sociais. Mas isso não quer dizer, contudo, que qualquer “opinião” é válida. Tomemos, por exemplo, o caso da “hipótese da terra plana”. Trata-se de uma hipótese que já havia sido rejeitada muito tempo antes de Yuri Gagarin fazer a primeira viagem ao espaço e constatar que a Terra é azul e redonda. Isso porque as proposições testáveis do “terraplanismo” foram todas sistematicamente rejeitadas pela evidência empírica. Como alguém já falou em algum momento: “você tem direito a ter a sua própria opinião sobre qualquer coisa, só não pode ter seus próprios fatos”.
A retórica é a arte do convencimento. Está claro que ela desempenha um papel muito relevante no debate público e, em menor medida, no debate acadêmico. Mas a retórica precisa desempenhar um papel coadjuvante no processo de tomada de decisão por parte dos políticos, do contrário é receita certa para o desastre. A discussão pública no Brasil sobre temas econômicos está repleta de retórica, mas de pouca ou nenhuma fundamentação empírica. Tomemos, como exemplo, o mito da “contração fiscal expansionista” que orientou a formulação de política econômica no Brasil desde 2015. Os economistas liberais – e outros, por conveniência, recém convertidos ao credo liberal – afirmaram repetidas vezes na imprensa que o ajuste fiscal era condição necessária e suficiente para o retorno do crescimento econômico pois a contração fiscal iria aumentar a confiança dos agentes econômicos, a qual levaria, por intermédio de algum mecanismo desconhecido (talvez a fada da confiança, rs), ao aumento do investimento privado. O que dizem os fatos? A experiência brasileira mostrou que o governo vem reduzindo o investimento público desde 2015 e o investimento privado, não só não aumentou, como na verdade se contraiu muito. Ao invés de crowding-out tivemos o crowding-in, mas no sentido errado! O caso brasileiro mostrou, mais uma vez, que Keynes estava certo: a política fiscal contracionista é, ao fim e ao cabo, contracionista.
O debate econômico no Brasil está muito pobre. Os economistas que aparecem na grande mídia estão, na sua maioria, eivados por uma visão liberal e simplória do mundo. Alguns chegam a falar disparates como “o problema do Brasil não é falta de demanda”. Como podem falar uma barbaridade dessas se a economia está operando com uma capacidade ociosa gritante e que aparece a olho nu? Como podem achar que o problema atual no Brasil está no lado da oferta se existem 13 milhões de desempregados e outras 12 milhões de pessoas que desistiram de procurar emprego (efeito desalento) ou estão trabalhando menos horas do que gostariam? Isso é o que podemos chamar de “terraplanismo econômico”. Não são todos os economistas liberais que se comportam dessa forma. Veja o exemplo de André Lara Rezende. Ele tem que gritar para seus pares liberais que a adesão ao “fiscalismo” está condenando o projeto liberal no Brasil ao fracasso completo, como ocorreu anteriormente na disputa entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen.
Em suma, todos os economistas brasileiros – e eu me incluo entre eles – tem a sua “ideologia”, ou seja, a sua “visão de mundo”. O que separa os economistas profissionais dos “economistas panfletários” ou, nos tempos modernos, “economistas de youtube”, é a adesão ao método científico. Contudo, as ciências sociais, por sua própria natureza, são ciências nas quais a aplicação do método científico não permite a solução definitiva das controvérsias entre os cientistas, como o Pérsio Arida já argumentou no seu artigo clássico “A história do pensamento econômico como teoria e retórica”, escrito em 1983. Por essa razão o “pluralismo” de escolas de pensamento deve ser visto com naturalidade, como resultado normal da operação do método científico num contexto em que a resolução de controvérsias é imperfeita, quando não impossível.