Entre os economistas heterodoxos brasileiros tem se formado um consenso de que a aceleração da taxa de crescimento do PIB brasileiro na era Lula deve-se a uma mudança no regime ou padrão de crescimento prevalecente na economia brasileira.  A administração petista teria introduzido no Brasil um regime de crescimento do tipo wage-led, no qual o crescimento robusto dos salários em termos reais gera uma forte expansão dos gastos de consumo, o que, por sua vez, induz um aumento do investimento devido ao efeito acelerador.

Que os gastos de consumo aumentaram de forma consistente no Brasil nos últimos 8 anos não há a menor dúvida. Menos óbvio, no entanto, é se o crescimento dos gastos de consumo foi impulsionado pelo crescimento dos salários ou pela espetacular expansão do crédito observada nesse período.

No contexto da teoria do crescimento liderado pela demanda agregada, um regime de crescimento do tipo wage-led ocorre quando a participação dos salários na renda nacional aumenta de forma consistente e significativa ao longo do tempo, induzindo uma redistribuição de renda dos capitalistas para os trabalhadores. Como a propensão a consumir dos últimos é, via de regra, maior que a dos primeiros, essa mudança na distribuição funcional da renda irá induzir um aumento “autônomo” dos gastos de consumo (um deslocamento para cima da função consumo Keynesiana), produzindo assim um aumento da renda e do produto de equilíbrio ao longo do tempo.

Está claro que um regime de crescimento do tipo wage-led não é sustentável no longo-prazo, devido as restrições econômicas e políticas a mudanças na distribuição funcional da renda. Do ponto de vista econômico, um aumento contínuo e persistente da participação dos salários na renda nacional conduz, mais cedo ou mais tarde, a uma queda da taxa de lucro (supondo uma economia que opera, no longo-prazo, com um grau normal de utilização da capacidade produtiva). Se a taxa de lucro cair abaixo de um certo nível mínimo, então os capitalistas irão simplesmente suspender novos investimentos e a economia irá parar de crescer por falta de capacidade produtiva. Do ponto de vista político, parece pouco provável que a classe capitalista vai ficar sentada, batendo palmas, para um processo que, no limite, conduz a “eutanásia dos capitalistas” …

No entanto, um crescimento do tipo wage-led pode ser mantido por um período longo de tempo, ainda que não indefinidamente. Sendo assim, para avaliar se o Brasil está ou não passando por um crescimento do tipo wage-led temos que analisar o comportamento dos salários nos ultimos anos.

Entre 2003 e 2010, segundo dados do IPEADATA, enquanto o salário mínimo aumentou 51 % em termos reais (deflacionado pelo INPC), o salário real médio dos trabalhadores com carteira assinada das 6 regiões metropolitanas aumentou apenas 11,49%. Esses dados mostram que, no período em consideração, ocorreu uma mudança na distribuição de renda no interior da classe trabalhadora. Com efeito, a relação salário mínimo real/salário real médio passou de 0,26 em 2003 para 0,35 em 2010, um aumento de 35 % no período em consideração. No entanto, quando olhamos para a distribuição de renda entre salários e lucros, os números são bem menos animadores. Em 2003 a participação dos salários na renda nacional bruta era igual a 32,15%. Em 2008, último ano para o qual existem dados disponíveis, a participação dos salários havia aumentado para 33,88%, ou seja, um aumento de apenas 5,38% no período em consideração.

Esses dados mostram que a participação dos salários na renda tem se mantido relativamente estável (com uma pequena tendência de aumento) durante a Era Lula. Dessa forma, parece pouco provável que a expansão dos gastos de consumo durante esse período tenha decorrido de mudanças exógenas (ou seja, induzidas pela política econômica) na distribuição de renda.  

Segundo dados apresentados no Valor Econômico de hoje (“Dívidas apertam o orçamento das famílias”), entre julho de 2006 e fevereiro de 2011, o endividamento das famílias medido como a razão entre as dívidas das famílias e a sua renda anual passou de 24,8% para 41,3%, ou seja, um aumento de 66,53% no período em consideração. No mesmo período, a fatia da renda mensal comprometida com o pagamento de dívidas passou de 21,4% para 25,8%. A relativa estabilidade dessa relação em face do fortissimo aumento do endividamento das familias explica-se, em larga medida, pelo aumento do prazo de maturidade dos empréstimos que as mesmas tem tomado ao longo desse período.

Esses números parecem indicar que o crescimento dos gastos de consumo no Brasil está sendo impulsionado, não pelo aumento dos salários, como quer o governo, mas pelo aumento do endividamento das familias. Ainda que o mesmo se ache abaixo dos níveis observados em outros países, o ritmo de crescimento do endividamento das famílias coloca várias dúvidas sobre a sustentabilidade do mesmo a médio-prazo. Independentemente da sustentabilidade desse padrão de crescimento, o fato é que os dados disponíveis apontam para um regime de crescimento do tipo finance-led – no qual o crescimento dos gastos de consumo é impulsionado pelo endividamento do setor privado – do que wage-led. Sendo assim, não deixa de ser irônico que o crescimento econômico obtido durante o governo do Partido dos Trabalhadores seja, de fato, resultado das decisões dos bancos e do sistema financeiro de expandir suas operações de crédito …