Em artigo publicado na Folha em 03/09/2023, “Ser rico não é pecado”, João Camargo, Presidente do Conselho da Esfera Brasil, sustenta que a taxação dos chamados “fundos exclusivos”, que aplicam seus recursos (para clientes de alta renda) em fundos offshores localizados em geral em paraísos fiscais no exterior, não só é ineficaz como compromete a capacidade do empreendedor brasileiro, gerando menor crescimento econômico.
O governo federal estima um montante de mais de R$ 1 trilhão aplicado nesses fundos, que praticamente não sofrem tributação, pois os rendimentos são mantidos por anos no exterior e só pagam imposto quando entram no Brasil. O projeto de lei encaminhado pelo governo ao Congresso Nacional estabelece uma alíquota de 15% do IRPF para renda entre R$ 6 mil e R$ 50 mil por ano, e 22,5% para renda superior a R$ 50 mil, a mesma alíquota máxima aplicada em aplicações financeiras de curso prazo no Brasil.
João Camargo sustenta que num mundo globalizado, a experiência mundial mostra que o rico consegue alocar seu dinheiro em lugares mais atrativos de forma quase instantânea, o que acaba resultando em queda da arrecadação e piora nos indicadores sociais, uma vez que desestimula o investimento que gera riqueza, inovação e emprego. Do ponto de vista moral não se deve penalizar o “protagonista de uma jornada de sucesso”.
O Brasil, como se sabe, é um dos países mais desiguais no mundo. Segundo relatório da PNUD/ONU de 2019, somos o sétimo país mais desigual do mundo – atrás apenas da África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique.
Um dos fatores que contribui para isso é a alta regressividade da estrutura tributária brasileira, uma vez que os super-ricos são aqueles que pagam relativamente menos impostos, em função de várias isenções fiscais. De fato, a maior parte da renda dos muito ricos não está sujeita ao IRPF, beneficiados pela isenção sobre lucros e dividendos distribuídos e alíquotas mais baixas de tributação exclusiva sobre rendimentos financeiros.
Portanto, nossa primeira observação ao referido artigo é que o Brasil, na comparação internacional, é um ponto fora da curva em termos da regressividade de sua estrutura tributária. Nada mais natural que o governo acabe com um privilégio injustificável, criando um “come-cotas’ sobre os fundos exclusivos tal como todos os demais fundos de investimentos no país.
Do ponto de vista moral, é imperativo que os super-ricos passem a pagar mais impostos como proporção de sua renda em relação aqueles pagos pela classe média, dando assim sua justa contribuição para o bem-estar da sociedade brasileira, tal como fazem na maioria dos países. Ser rico não é pecado, mas tem que pagar imposto!
A segunda observação é relativa à argumentação supostamente técnica do autor de que a experiência internacional mostra a ineficácia da taxação de fortunas. Aqui claramente há uma confusão em relação ao imposto sobre rendimentos dos fundos off-shore (uma variável de fluxo) com a proposta de criação de imposto sobre grandes fortunas (uma variável de estoque). Como se diz popularmente, troca-se alhos por bugalhos!
Por fim, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre desigualdade de renda e crescimento econômico. É conhecida a frase atribuída ao Ministro Delfim Netto (ele nega a autoria) de que “é preciso fazer o bolo crescer para depois distribuir”. Dessa forma, o efeito colateral de um maior dinamismo econômico seria precisamente uma maior desigualdade na distribuição de renda.
Numa amostra de 87 países para o período 1970-2008, Jayme Ros, em seu livro publicado pela Oxford University Press, “Rethinking Economic Development, Growth and Institutions”, encontrou uma relação inversa entre crescimento do PIB per-capita e o índice de Gini de concentração de renda, controlando para uma série de variáveis institucionais e geográficas. Ou seja, países com maior desigualdade na distribuição de renda são precisamente os países que crescem menos.
Dessa forma, podemos concluir que a justiça social não é apenas um imperativo moral e ético, mas também uma política sensata para estimular o crescimento econômico.
José Luís Oreiro – Professor de Economia da FACE/UnB e Coordenador do Structuralist Development Macroeconomics Research Group (SDMRG).
Luiz Fernando de Paula – Professor de Economia do IE/UFRJ, Coordenador do GEEP/IESP-UERJ e Vice-Coordenador do SDMRG.
“Não é dos teus bens que tu dás aos pobres, é uma pequenina parcela do que lhes pertence que tu lhes restituis, porque é um bem comum dado para uso de todos que tu usurpas só para ti” (Santo Ambrósio).
Santo Ambrósio
Na edição de domingo (03/09/2023) o Sr. João Camargo, Presidente do Conselho da Esfera Brasil, assina um artigo crítico a medida provisória que prevê a taxação dos chamados “fundos exclusivos”, utilizados pelos endinheirados, para manter as suas fortunas em fundos de investimento off-shores, geralmente em paraísos fiscais, onde conseguem escapar da tributação que a maioria de nós mortais da classe média trabalhadora composta por gente honesta que paga seus impostos (a maioria silenciosa para usar as palavras do Camarada Richard Nixon) está submetida. A argumentação do artigo está dividida em duas partes. A primeira, pretensamente de caráter mais técnico, foca na ideia de que a tributação proposta em Medida Provisória pelo Presidente Lula, é ineficiente pois irá (pasmem) induzir uma fuga de capitais do Brasil para locais onde os mesmos já se encontravam antes do Presidente da República pensar em editar a Medida Provisória. A segunda, de caráter moral, é que a sociedade brasileira não pode tributar os endinheirados porque todos nós outros, sejamos pobres ou da classe média, devemos nossos empregos e nossa vida a essa classe de pessoas que é injustiçada nas narrativas promovidas pela esquerda comunista que deseja que todos os cidadãos sejam igualmente pobres. Segundo o autor os 99,9% da sociedade brasileira que não possui fundos off-shores deveria, na verdade, em sinal de agradecimento, ficar de joelhos, submissa, e dar graças a esse gente de bom coração que, ao poder desfrutar de todos os prazeres lícitos, e muitos ilícitos, da vida é que nos dá de comer a partir das migalhas que caem das suas mesas.
Esse artigo é patético e não mereceria nenhuma resposta caso não tivesse sido publicado pela Folha de São Paulo, um jornal que se diz progressista (pero no mucho). Além do mais, minha consciência católica faz com que, citando Don Miguel de Unamuno (https://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_de_Unamuno), “no quería hablar porque me conosco, pero se me ha tirado de la lengua y como aquél que calla otorga devo hacerlo“.
Foto: Don Miguel de Unamuno
Vamos começar pela parte pretensamente técnica. O autor deliberadamente e de forma claramente desonesta quer induzir o leitor ao erro ao confundir o imposto sobre os rendimentos (uma variável de fluxo) dos fundos off-shore com a proposta de criação do imposto sobre grandes fortunas (uma variável de estoque). Os argumentos que o autor apresenta ao longo da primeira parte do texto apontam para a ineficiência arrecadatória do imposto sobre grandes fortunas (coisa que eu e boa parte dos economistas profissionais de esquerda e de direita concordam) como argumento contra o imposto sobre os rendimentos dos fundos off-shore. O autor usa inclusive o (péssimo) exemplo do ator Francês Gerard Depardieu que mudou o seu domicílio fiscal para a (sic) Bélgica para pagar menos impostos. Na verdade, Gerard Depardieu mudou seu domicílio fiscal para a Rússia de Vladimir Putin (https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/05/gerard-depardieu-declara-renda-na-russia-para-pagar-menos-imposto.html) não para a Bélgica, para pagar um imposto de renda de 6% como autônomo. Apesar de ter mudado seu domicilio eleitoral para a Rússia, aquele paraíso de democracia e defesa dos direitos humanos, e ter se tornado cidadão russo, o ex-francês continua ganhando seu dinheiro (pasmem) na França, tendo sido protagonista da Série Marseille lançada pela Netflix em 2016. Em outras palavras, a França é um excelente lugar para se ganhar dinheiro honesto com trabalho mas na hora de dar a sua cota de contribuição para a sociedade Gerard Depardieu prefere financiar Vladimir Putin e suas aventuras no leste da Europa.
Mas retornemos ao ponto inicial: o autor de forma deliberada e desonesta faz o leitor acreditar que a Medida Provisória aprovada pelo Presidente Lula na semana passada cria o Imposto sobre Grandes Fortunas. Isso é uma mentira descabida. O que a Medida Provisória faz é criar um “come-cotas” sobre os fundos exclusivos e off-shore tal qual todos os demais fundos de investimentos – nos quais a classe média aplica suas economias para trocar de carro, fazer uma viagem para o exterior ou pagar a universidade dos filhos – pagam. Em outras palavras, a MP editada pelo Presidente da República simplesmente acaba com um PRIVILÉGIO INJUSTIFICÁVEL dos endinheirados. Eles agora serão tratados pela Receita Federal como qualquer cidadão brasileiro, sem nenhuma benesse só por serem ricos.
A segunda parte do artigo deveria ser motivo de vergonha para o autor, mas dado que o Brasil já conseguiu eleger Bolsonaro como Presidente da República esse povo perdeu todo o senso de vergonha e de ridículo. O seguinte trecho vai merecer meu comentário econômico e moral:
“O brasileiro que construiu seu patrimônio deve ser admirado como protagonista de uma história de sucesso. Ele não apenas representa um exemplo de realização, como contribui, muito concretamente, para o desenvolvimento nacional. É ele quem investe, empreende, assume riscos, inova, cria riquezas, gera empregos e paga enormes somas de tributos. Ele é a máquina que produz crescimento econômico”.
Vamos por partes. Ninguém no governo, e muito poucos fora dele, estão defendendo a expropriação dos meios de produção. Até onde eu saiba o único partido que defende a implantação do comunismo no Brasil é o PSTU. Existe um debate sim sobre taxação de grande fortunas, mas como o próprio nome diz trata-se de “grandes” fortunas, não o apartamento e/ou a casa de praia ou de campo da classe média trabalhadora. Tão pouco se está discutindo um aumento da tributação sobre os rendimentos das aplicações financeiras de quem já paga um monte de impostos. O que se discute é precisamente fazer com que os super ricos, que pagam como proporção da sua renda, muito menos imposto que a classe média trabalhadora, faça a sua justa contribuição para o bem comum da sociedade brasileira pagando impostos, como proporção da sua renda, que sejam mais altos do que os pagos pela classe média. Trata-se de pura e simples progressividade tributária, nada que ver com expropriação dos meios de produção.
Passemos agora a uma análise sociológica da classe que possui fundos de investimento off-shores. O autor do artigo quer fazer os leitores acreditarem que se trata de uma classe de empresários schumpeterianos que implantaram inovações bem sucedidas em seus negócios, ou seja, pessoas análogas ao Bill Gates e o Steve Jobs. Pois bem, quantos Bill Gates e Steve Jobs o Brasil produziu nos últimos 30 anos? Salvo melhor juízo, nenhum. Os super-ricos brasileiros são uma classe social composta por herdeiros de super-ricos, magnatas do mercado financeiro (os quais vivem as custas da mais alta taxa de juros do planeta Terra), grileiros e empresários que tem negócios não muito Republicanos com qualquer que seja o governo de plantão. Essa classe não paga imposto de renda sobre lucros distribuídos, desfruta de generosas isenções fiscais concedidas ao longo de mais de 40 anos pelos governos estaduais e federal e ainda tem tratamento tributário diferenciado ao mandar o seu dinheiro para o exterior onde será usado para financiar a aquisição de ativos em outros países que não o Brasil. Eu não vejo nada de patriótico ou meritório nesse tipo de comportamento. Pelo contrário, trata-se de um comportamento que poderíamos classificar como rapina feita sob a proteção do Estado Brasileiro.
Mas voltemos nossa atenção agora ao título do artigo “Ser rico não é pecado”. Como católico e estudioso da Doutrina Social da Igreja Católica posso afirmar que esse título é uma meia-verdade. De fato, a Igreja Católica não condena a propriedade privada, mas alerta para o princípio da destinação universal dos bens, a qual foi confirmada pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II (https://pt.wikipedia.org/wiki/Gaudium_et_Spes), a qual afirma que:
“Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade (8). Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a este destino universal dos bens. Por esta razão, quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros (9). De resto, todos têm o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias. Assim pensaram os Padres e Doutores da Igreja, ensinando que os homens têm obrigação de auxiliar os pobres e não apenas com os bens supérfluos (10). Aquele, porém, que se encontra em extrema necessidade, tem direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita (11). Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres – «alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentaste, mataste-o» (12) – repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos” (Gaudium et Spes, 69).
Nos Santos Evangelhos não faltam passagens nas quais Jesus Cristo alerta aos seus discípulos sobre o perigo das Riquezas para a salvação eterna do Homem. Uma das mais famosas é a que descorre sobre o Jovem rico. Lemos no Evangelho de São Mateus 19:16-30 que:
“
Jovem Rico
16 Eis que alguém se aproximou de Jesus e lhe perguntou: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna?”
17 Respondeu-lhe Jesus: “Por que você me pergunta sobre o que é bom? Há somente um que é bom. Se você quer entrar na vida, obedeça aos mandamentos”.
18 “Quais?”, perguntou ele.
Jesus respondeu: “‘Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não darás falso testemunho, 19 honra teu pai e tua mãe’[a] e ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’[b]”.
20 Disse-lhe o jovem: “A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda?”
21 Jesus respondeu: “Se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois, venha e siga-me”.
22 Ouvindo isso, o jovem afastou-se triste, porque tinha muitas riquezas.
23 Então Jesus disse aos discípulos: “Digo-lhes a verdade: Dificilmente um rico entrará no Reino dos céus. 24 E lhes digo ainda: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. ”
Em suma, ser rico pode ser pecado sim, caso a riqueza não esteja sendo usada para o bem comum da sociedade. Aqueles que, sendo ricos, procuram maneiras, ilegais ou não, de evadir da justa contribuição, por intermédio do sistema de impostos, para que o Estado seja capaz de prover os bens públicos e a assistência social necessária para aliviar a situação dos mais necessitados estão cometendo um pecado grave. Isso não tem nada que ver com o comunismo, mas é o Cristianismo na sua essência mais elementar.
Quero finalizar esse artigo fazendo algumas considerações sobre desigualdade de renda e crescimento econômico. Creio que todo(a)s conhecem a frase atribuída ao Ministro Delfim Netto (ele nega a autoria) de que “é preciso fazer o bolo crescer para depois distribuir”. Dessa forma, o efeito colateral do dinamismo econômico seria precisamente uma maior desigualdade na distribuição de renda. Numa amostra de 87 países para o período 1970-2008 Ros (2013, p.28) encontrou uma relação inversa entre crescimento do PIB per-capita e o índice de Gini de concentração de renda, controlando para uma série de variáveis institucionais e geográficas; ou seja, os países com maior desigualdade na distribuição de renda são precisamente os países que crescem menos, e quanto maior a desigualdade menor é a taxa de crescimento. Dessa forma, podemos concluir que a justiça social não é apenas um imperativo moral e ético, principalmente numa sociedade majoritariamente Cristã como é a sociedade Brasileira, mas também uma política sensata para estimular o crescimento econômico.
Referências
Ros, J. (2013). Rethinking Economic Development, Growth and Institutions. Oxford University Press: Oxford
Graduado em Economia pela FEA-USP. Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY. Foi economista, gestor de fundos e CEO em instituições do mercado financeiro em São Paulo. É professor de economia na FGV-SP desde 2002. Brasil, uma economia que não aprende é seu último livro. Conselheiro da FIESP e Economista-chefe do Banco Master
"A família é base da sociedade e o lugar onde as pessoas aprendem pela primeira vez os valores que lhes guiam durante toda sua vida". (Beato João Paulo II)