No Valor Econômico de hoje somos mais uma vez brindados pela incomparável ingenuidade da ortodoxia brasileira no que se refere a política macroeconômica. Dois professores da EPGE/FGV-RJ escreveram um artigo no qual afirmam que a razão fundamental da taxa real de câmbio na China e nos demais países asiáticos ser “alta” é porque, e tão somente porque, a taxa de poupança é elevada. Dessa forma, o modelo de desenvolvimento asiático não seria passível de imitação por parte do Brasil, já que por estas bandas o incentivo que os trabalhadores tem para poupar é baixo, o que resulta numa baixa taxa de poupança agregada. A reduzida taxa de poupança doméstica faz com que seja impossível financiar o investimento requerido para o crescimento de pleno-emprego apenas com recursos locais, impondo assim uma apreciação da taxa real de câmbio para atrair poupança externa e, dessa forma, fechar o hiato de recursos existente na economia brasileira.

Esse raciocínio é de uma ingenuidade que é indigna dos autores do artigo em consideração, os quais são excelentes economistas neoclássicos. Em primeiro lugar, se a taxa real de câmbio na China fosse “alta” unicamente devido a elevada taxa de poupança que se observa nesse país, então como se explica a pressão do governo dos Estados Unidos e dos países Europeus para que o Banco Central da China permita uma valorização do yuan frente ao dólar e ao euro? Burrice? Assumindo-se que os governos dos países ocidentais não são burros e que  a explicação relevante para o câmbio depreciado da China é a sua elevada taxa de poupança, então os governos ocidentais deveriam estar pressionando o governo da China a adotar um poderoso “Welfare State” de forma a induzir uma valorização rápida e profunda do yuan. No entanto, a pressão que se observa do Ocidente não é nesse sentido. Os principais esforços dos governos ocidentais tem sido direcionados para que o governo da China permita que a taxa de câmbio se aprecie. Em outras palavras, na avaliação dos governos ocidentais existem pressões de mercado para a valorização do yuam que são neutralizadas pela atuação do Banco Central da China. Se não fosse esse o caso, porque razão o Banco Central da China teria quase dois trilhões de dólares de reservas, ainda mais sabendo que a movimentação de capitais é severamente restrita pelo governo da China, o que reduz a chance de um ataque especulativo contra o yuan e, portanto, a necessidade de se possuir elevadas reservas internacionais? Esse racíocínio mostra de forma clara que nem os governos ocidentais, e muito menos o governo da China,  compartilham da visão ingênua dos ortodoxos brasileiros quanto a política cambial Chinesa: a taxa real de câmbio na China é, em larga medida, uma decisão de política macroeconômica, decisão essa que prejudica os interesses comerciais norte-americanos e europeus no mundo e viabiliza a estratégia chinesa de crescimento puxado pela exportação de produtos manufaturados.

Em segundo lugar, a taxa agregada de poupança na China é alta, entre outras razões, porque o câmbio é relativamente alto. Com efeito, a poupança privada na China é alta, em parte, porque os trabalhadores precisam garantir seu sustento na velhice, o que atua como um forte incentivo para o aumento da poupança pessoal, mas também porque o câmbio depreciado reduz os salários reais, transferindo renda dos trabalhadores para as empresas, aumentando assim a poupança corporativa. Como as corporações possuem uma propensão a poupar maior do que os indivíduos, segue-se que uma redistribuição de renda das pessoas físicas para as pessoas jurídicas tem o efeito de aumentar a taxa de poupança do setor privado, a qual é a soma da poupança individual com a poupança corportativa.

Com efeito, em 2007 a taxa de poupança na China havia alcançado a espantosa marca de 50% do PIB, sendo que a poupança corporativa respondia por cerca de metade da poupança chinesa. Com base nesses números, Martin Woolf, colunista do Financial Times, afirmou que : ” Devemos nos perguntar porque a China obtém superávits em conta-corrente tão elevados …  a frugalidade das famílias chinesas não é a principal explicação para o excesso de poupança na China … a principal explicação é a elevada taxa de poupança corporativa da China” (Financial Times, 03/10/2006). Daqui se segue que a elevada taxa de poupança da China é, também, o resultado de sua política macroeconômica, uma vez que a distribuição da poupança privada entre poupança pessoal e poupança corporativa depende, em parte, do nível da taxa real de câmbio, a qual é fortemente influenciada pela política do Banco Central da China de acumular monstruosas reservas internacionais.

Em terceiro lugar, os autores ingenuamente afirmam que uma mudança na política cambial no Brasil exigiria um aumento da taxa de inflação, a não ser que se realizem reformas estruturais, como a reforma previdenciária, que permitam uma elevação da taxa de poupança privada. Seu raciocínio se baseia no suposto que na ausência de um aumento da poupança privada, a depreciação da taxa de câmbio só será possível mediante uma expansão monetária que levará, ao fim e ao cabo, a um aumento da taxa de inflação. Esse raciocínio, no entanto, possui uma série de equívocos. O primeiro equívoco é achar que mudanças na taxa de inflação podem afetar a taxa real de câmbio no longo-prazo. Ora uma das premissas do pensamento neoclássico do qual os autores compartilham, e são arodorosos defensores, é que variações puramente nominais não tem efeito duradouro sobre as variáveis reais. O segundo equívoco é achar que a poupança doméstica só pode aumentar por intermédio de um aumento da taxa de poupança privada. Ora a poupança doméstica é a soma da poupança privada com a poupança do governo. Daqui se segue que uma nova política cambial pode estar ancorada num aumento significativo da poupança pública, o que aliás é defendido por boa parte dos expoentes do “novo-desenvolvimentismo” brasileiro.

O novo-desenvolvimentismo não se baseia numa visão idílica do mundo na qual a implantação de uma nova política cambial pose ser feita sem custos. Esses custos existem !!! Em primeiro lugar, é necessária uma ampla reforma fiscal que não só elimine o déficit público, como também aumente consideravelmente o prazo de vencimento da dívida pública, de forma a aumentar o grau de autonomia da política macroeconômica, principalmente com respeito aos interesses do sistema financeiro.  Em segundo lugar, deve-se criar um fundo de estabilização cambial, com recursos provenientes do Tesouro, não do Banco Central, para atuar como market-maker no mercado de câmbio e alinhar a taxa real de câmbio com seu valor de equilíbrio de longo-prazo. Com efeito, vários estudos econométricos, alguns realizados pelo Ministério da Fazenda, mostram a existência de uma sobre-valorização  cambial de 25%. Nesse contexto, um aumento da taxa de poupança – sem mudanças no modus operandi da política cambial, irá apenas aumentar o tamanho do desalinhamento cambial ao desvalorizar a taxa real de câmbio de equilíbrio, sem ter um efeito perceptível sobre a taxa real de câmbio de mercado. Por fim, para reduzir o custo fiscal da operação do Fundo de Estabilização Cambial é necessário aumentar o nível de controles a entrada de capitais na economia brasileira, o que irá reduzir o fluxo de entrada de divisar para o Brasil, diminuindo assim o tamanho do Fundo de Estabilização que é requerido para garantir a competitividade de nossa taxa de câmbio.