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Debate Macroeconômico, Desequilíbrios comerciais inter-regionais, Romeu Zema, Terraplanismo econômico
José Luis Oreiro (*)
No início de agosto de 2023 o Governador de Minas Gerais, Romeu Zema, numa polêmica entrevista para o jornal O Estado de São Paulo afirmou que “[o Brasil funciona como um] “produtor rural que começa só a dar um tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito”, [referindo-se aos estados nordestinos] (Ver https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2023/08/09/zema-nao-se-desculpa-por-fala-contra-o-nordeste-e-diz-que-tem-gente-fazendo-intriga.ghtml).
Muito provavelmente o governador de Minas Gerais deveria estar se referindo aos repasses que o governo federal faz para os estados e municípios brasileiros como, por exemplo, os repasses do FPEM (Fundo de Participação de Estados e Municípios), Fundeb, Funcef, ITR, Cide-Combustíveis, entre outros, os quais são majoritariamente apropriados pelos estados e municípios da Região Nordeste conforme podemos visualizar na Tabela Abaixo.
Fonte: Ministério da Fazenda. Dados coletados por Kérssia Kamenach. Elaboração do autor.
Na figura acima fica claro que a região nordeste recebeu, no período 2017-2021, uma média de R$ 41 bilhões (aproximadamente 8 bilhões de Euros) a mais de repasses da União do que a Região Sudeste, que concentra a maior parte da população do país, e R$ 8 bilhões a mais do que a Região Sul. Dessa forma, o governo federal estaria (sic) cuidando melhor das vaquinhas que dão pouco leite (o nordeste) comparativamente as vaquinhas que dão muito leite (o sudeste e o sul) [ ver https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2023/08/09/zema-nao-se-desculpa-por-fala-contra-o-nordeste-e-diz-que-tem-gente-fazendo-intriga.ghtml%5D
Esse tipo de afirmação, ainda que amparada em números, é falaciosa porque foca em apenas um dos lados dos repasses do governo federal, o lado da transferência de renda, sem atentar para o destino que é dado a essas transferências. Em outras palavras, o que as diferentes regiões do país fazem os repasses que obtém do governo federal? A resposta é muito simples: o dinheiro das transferências do governo federal é usado pela região nordeste para ajudar a financiar os imensos déficits comercias que a região nordeste tem com as regiões sul e sudeste, conforme podemos ver na tabela abaixo.
Fonte: Ministério da Fazenda. Dados coletados por Kérssia Kamenach. Elaboração do autor.
A figura acima apresenta o saldo de comércio inter-regional (exportações e importações entre as regiões brasileiras) para o período 2017-2021. Como podemos constatar facilmente na figura a região Nordeste apresenta déficits comerciais crescentes no período, enquanto as regiões sul e sudeste apresentam superávits comerciais crescentes. Na média do período a região nordeste teve um déficit comercial com as demais regiões do Brasil de R$ 245 bilhões por ano, tendo recebido de repasses da União uma média de R$ 126 bilhões, o suficiente para financiar apenas 51,4% do seu déficit comercial.
O que aconteceria se, seguindo a lógica do governador Romeu Zema, o governo federal reduzisse os repasses para a região Nordeste? Será que a situação econômica das regiões sul e sudeste iria melhorar porque os governos dessas duas regiões teriam mais dinheiro para “investir”?
Caso os repasses a região nordeste fossem reduzidos o resultado seria uma redução da renda líquida da população do nordeste o que levaria a uma redução dos seus gastos de consumo. Como a maior parte da indústria manufatureira – incluindo bens de consumo não duráveis, semi-duráveis e duráveis – se encontra nas regiões sul e sudeste então o resultado seria uma redução das exportações de produtos manufaturados dessas regiões para o nordeste, o que levaria a uma destruição dos empregos industriais nessas regiões. Como o emprego industrial paga salários elevados e as regiões sul e sudeste tem pouco vazamento de demanda para as demais regiões do país, o efeito multiplicador da contração das exportações para o nordeste seria bastante elevado, fazendo com que muito provavelmente a contração da renda e do emprego nas regiões sul e sudeste seja maior do que a contração da renda e do emprego do nordeste. No final do processo todas as regiões do país sairiam perdendo, mas os maiores perdedores em termos relativos seriam precisamente as regiões sul e sudeste.
A fala do governador Romeu Zema expõe de uma forma cristalina o “terraplanismo econômico” da ultra-direita brasileira. Não é de estranhar, portanto, que, dado que Jair Bolsonaro está inelegível por 8 anos, o nome de Romeu Zema seja visto como uma alternativa para a ultra-direita brasileira tentar voltar ao poder em 2026. Quanto a essa possibilidade me vem a mente a frase do Almirante Blas de Lezo ao derrotar a tentativa da Inglaterra de tomar Cartagena de Indias (Colombia) em 1741: “Vieram com a arrogância de sempre, foram derrotados pelos métodos de sempre”.
(*) O autor agradece o trabalho de Kerssia Kamenach, doutoranda em economia pela Universidade de Brasília, na tarefa de compilação da base de dados utilizada nesta publicação.