Por José Luis Oreiro
Não sou assinante da Folha de São Paulo, mas apenas do Valor Econômico, único jornal que leio com certa regularidade para me atualizar sobre a conjuntura econômica do Brasil. Fiquei sabendo por outras pessoas a respeito da última coluna da Sra. McCloskey na Folha de São Paulo onde ela apresenta uma crítica a Teoria do Valor Trabalho de Marx para tentar denegrir a reputação profissional da economista Maria Mazzucato a quem ela denomina de economista marxista. Recentemente eu li o livro O Estado Empreendedor de Mazzucato e não vi nada lá que tive algo que ver com Marx. O marco teórico de Mazzucato é uma síntese entre o Pensamento de John Maynard Keynes sobre a influência da incerteza sobre a tomada de decisão e as ideias de Joseph Schumpeter sobre a inovação tecnológica e o processo de destruição criativa como o motor do capitalismo. A tese central de Mazzucato é que a inovação tecnológica, principalmente aquela de caráter desruptivo, envolve uma dose alta e não-mensurável de incerteza que inviabiliza a tomada de decisão por parte do setor privado, razão pela qual o Estado tem um papel fundamental no financiamento e planejamento do progresso tecnológico. Isso não tem nada que ver com Karl Marx ou com a teoria do valor trabalho.
Antes de apresentar os argumentos críticos de McCloskey a teoria do valor-trabalho, temos que entender o que é uma teoria do valor e qual o seu propósito. A teoria do valor é uma teoria a respeito da determinação das relações de troca ou do preço relativo das mercadorias, ou seja, do preço da mercadoria A em termos da mercadoria B. Se conhecermos a relação de troca entre as mercadorias será possível comparar magnitudes de mercadorias diferentes, reduzindo essas magnitudes a um denominador comum. A teoria do valor trabalho estabelece apenas que esse denominador comum é o trabalho, mais especificamente a quantidade de horas de trabalho direta e indiretamente necessárias para a produção das mercadorias. Assim se são necessárias 4 horas de trabalho para produzir uma cadeira (incluindo os insumos e instrumentos utilizados na produção da mesma) e 12 horas de trabalho para produzir uma mesa então a relação de troca será de 3:1, ou seja, tres cadeiras serão trocadas por uma mesa supondo uma economia de concorrência livre na qual os trabalhadores possam migrar do setor produtor de mesas para o setor produtor de cadeiras ou vice-versa sem nenhum custo.
Essa teoria foi originalmente formulada por David Ricardo em seu “Principios de Economia Política e Tributação” publicado originalmente em 1817. Não há nada na teoria de Ricardo que diga que o trabalho é a fonte do valor das mercadorias e que, portanto, os trabalhadores tem direito de se apropriar de todo o fruto do seu trabalho. O capital é visto como necessário ao processo produtivo por consistir num adiantamento dos meios de subsistência dos trabalhadores e no conjunto dos meios de produção. Como tal o capital deveria ter uma remuneração proporcional ao volume aplicado na produção, sendo essa proporção da pela taxa de lucro, a qual em condições de concorrência livre, deveria ser igual para todos os setores da economia.
Os salários, por sua vez, seriam determinados pelo preço natural do trabalho entendido por Ricardo como o valor – em termos de horas trabalhadas – dos meios de subsistência necessários para a reprodução da força de trabalho. Importante notar que a subsistência aqui não é definida em termos estritamente fisiológicos, mas histórico-institucionais: trata-se do valor do salário real que cada sociedade, em cada momento histórico específico, considera como sendo o mínimo necessário para a reprodução da força de trabalho. Em suma, o salário de subsistência é uma convenção social.
Marx avançou onde Ricardo parou. Para Marx a origem do excedente social – entendido como a diferença entre o produto social e o consumo necessário para a reprodução em escala simples do sistema produtivo – seria gerado pela apropriação da mais-valia, ou seja, da diferença entre o valor que os trabalhadores adicionam no processo produtivo e o valor de reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, Marx afirmava que em condições de concorrência livre o número de horas trabalhadas era maior do que o necessário para repor os meios de produção utilizados na produção das mercadorias e a reprodução da força de trabalho. Esse sobre-trabalho não remunerado é a origem do lucro.
Qual a crítica de McCloskey a essa teoria? No artigo da FSP ela diz que a teoria do valor trabalho está errada porque (sic) as decisões econômicas são tomadas com base nos resultados futuros, não com base no passado. Assim (sic) os custos fixos (por exemplo, o custo com máquinas e equipamentos utilizados no processo produtivo) por serem custos afundados não seriam relevantes para a determinação dos preços relativos. Essa é a afirmação mais idiota ou mal intencionada que já li de um colega economista. Qualquer empresário, ao determinar os preços pelos quais espera vender seus produtos, precisa embutir uma margem de lucro que seja suficientemente alta para lhe proporcionar uma taxa de lucro desejada sobre o capital investido. Se a taxa de lucro se mostrar sistematicamente menor do que a desejada então o empresário irá encerrar seu negócio e mudar para uma atividade mais lucrativa.
Em segundo lugar, o que custos afundados tem que ver com preços relativos? A teoria do valor trabalho diz que as mercadorias são trocadas a proporção da quantidade de trabalho necessária para a sua produção, o que inclui os meios de produção usados hoje para a produção dessas mercadorias. Está claro que o progresso técnico pode reduzir a quantidade de trabalho requerido para a produção dos equipamentos necessários para a produção de uma mercadoria, mas a menos que o progresso técnico seja diferenciado no interior do setor de bens de capital, então todas as mercadorias seriam igualmente beneficiadas, mantendo-se inalteradas as suas relações de troca.
Se a senhora McCloskey tivesse ao menos se dado o trabalho de ler o capítulo 1 dos Principios de Economia Política e Tributação de Ricardo então ela saberia que existe sim um problema grave de consistência interna com a teoria do Valor Trabalho. Para que as mercadorias sejam trocadas a proporção da quantidade de trabalho necessária para a sua produção é necessário que a proporção entre trabalho direto e trabalho indireto seja igual em todos os ramos de produção, do contrário, as relações de troca irão depender da taxa de lucro, criando assim um problema de circularidade lógica: para conhecer a taxa de lucro geral do sistema precisaremos conhecer os preços relativos, mas estes não podem ser determinados sem conhecer a taxa de lucro (Ver http://joseluisoreiro.com.br/site/link/fb90d279f318b7e6c8834c62b50003783ccd2861.pdf).
Marx estava perfeitamente ciente desse problema, e tentou resolve-lo ao tratar da questão da transformação de valores em preços de produção. Muito sucintamente, os preços de produção são o conjunto de preços que permite a obtenção de uma taxa uniforme de lucro em todos os setores de atividade produtiva, ao mesmo tempo que garantem a reprodução em escala simples da atividade produtiva, incluindo a reprodução da força de trabalho. Se a teoria do valor trabalho for correta a relação entre os preços de produção das n mercadorias produzidas dentro do sistema deve ser igual a razão entre as quantidades de trabalho direta ou indiretamente necessárias para a sua produção. Marx acreditou ser capaz de demonstrar essa equivalência. Para tanto ele considerou uma economia com 5 setores totalmente independentes entre si (ver https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=http%3A%2F%2Fjoseluisoreiro.com.br%2Fsite%2Flink%2Fa3b5e6ec7aa2af68cd579725133977e92aaed305.ppt&wdOrigin=BROWSELINK). Nesse contexto, Marx foi capaz de mostrar que a soma dos valores (em horas de trabalho) produzidas pelos 5 setores era igual a soma dos preços de produção. Acontece que a solução de Marx para o problema da transformação é apenas um caso particular. No caso mais geral no qual os setores de atividade econômica são inter-dependentes – como ocorre em qualquer tipo de análise insumo-produto – então não é possível mostrar a equivalência entre valores e preços de produção. Coube ao economista italiano Piero Sraffa no seu “Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias” que a teoria do valor é, na verdade, desnecessária: pode-se determinar os preços de produção sem qualquer referência a quantidade de trabalho direta ou indiretamente necessária para a produção das mercadorias. Além disso, a origem do excedente não se deve (a nível de teoria pura) a exploração da força de trabalho, mas a existência de uma mercadoria cuja produção seja superior a quantidade dessa mercadoria utilizada como insumo em todas as demais n-1 mercadorias produzidas dentro do sistema. Basta que uma única mercadoria tenha essa propriedade para que seja possível definir uma taxa de lucro uniforme e positiva para todo o sistema econômico.
Na parte final do seu artigo McCloskey afirma que a teoria do valor correta é a teoria marginal segundo a qual os preços são determinados pela produtividade marginal dos fatores de produção. Aqui McCoskey, deliberadamente ou não, está confundindo a teoria do valor com a teoria da distribuição de renda. A teoria neoclássica do Valor estabelece que os preços das mercadorias são determinados pelas condições de equilíbrio entre oferta e demanda em todos os mercados, o assim chamado equilíbrio geral Walrasiano. As condições de existência de um vetor de preços de equilíbrio para todos os mercados foram estabelecidas apenas na década de 1950 com o trabalho de K. Arrow e G. Debreu. A solução apresentada por eles, contudo, demanda a existência de mercados contingentes completos, ou seja, que existem mercados para todos os produtos definidos não apenas por intermédio de seus atributos físicos como também do tempo e do estado da natureza a ele associado. Nesse tipo de economia não existe incerteza, justamente o problema que é destacado por Mazzucato como essencial para entender o papel do Estado no processo de inovação tecnológica.
A teoria neoclássica da distribuição é que estabelece que os fatores de produção são remunerados de acordo com suas produtividades marginais, desde que a tecnologia de produção apresente retornos constantes de escala e que prevaleça a concorrência perfeita em todos os mercados de fatores. Ora a nova teoria do crescimento econômico já demonstrou por A + B que retornos constantes de escala são incompatíveis com o crescimento sustentado da produtividade do trabalho e da renda per-capita, logo a hipótese de retornos constantes é simplesmente absurda. Além disso, a simples experiência mostra que os mercados de trabalho e de capital estão (e sempre estiveram) muito longe da concorrência perfeita, razão pela qual a ideia de que os fatores de produção são remunerados com base na sua produtividade marginal é uma ideia absurda que é reproduzida até os dias atuais por razões puramente ideológicas de se retratar o capitalismo como um sistema justo, no qual cada um é remunerado de acordo com sua contribuição para o sistema.
O capitalismo é injusto por isso precisa ser socialmente regulado. Não se trata de defender a coletivização dos meios de produção como ocorreu na Revolução Bolchevique na Rússia em 1917. Sabemos que esse experimento de “socialismo real” foi um rotundo fracasso. Mas entre uma economia centralmente planificada e uma economia de livre-mercado existem 50 tons de cinza que compõe um mosaico de formas diferentes de regulação do capitalismo. Cada sociedade deve escolher o tom de cinza mais apropriado para a sua realidade.