José Luis Oreiro*
Qualquer pessoa sensata, nessa altura dos acontecimentos, sabe que Jair Bolsonaro não só não tem nenhum compromisso com a democracia, como deseja se instalar no Palácio do Planalto de maneira definitiva, como um caudilho aclamado pelas hostes que o apoiam, ainda que elas não representem a maioria do eleitorado brasileiro. A questão em aberto é saber como e em que condições Bolsonaro poderia se tornar um caudilho sem um golpe de Estado clássico por intermédio da intervenção direta das forças armadas contra o Estado Democrático de Direito. Uma repetição do golpe de 1964 não parece estar a disposição de Bolsonaro em função da antipatia dos governos dos Estados Unidos e da França (país com o qual o Brasil tem fronteira terrestre via Guiana Francesa) ao mandatário brasileiro e também, mas não menos importante, a existência de uma parcela significativa de oficiais legalistas no Alto Comando das Forças Armadas Brasileiras.
O projeto autoritário de Bolsonaro tem contra si dois obstáculos significativos. O primeiro é a inaptidão revelada de Bolsonaro para governar. Ao longo dos mais de três anos de mandato de Bolsonaro não só não se viu nenhuma iniciativa prepositiva por parte do seu governo que tenha sido bem-sucedida – a reforma da previdência só foi aprovada devido ao empenho pessoal do então presidente da câmara dos deputados, Rodrigo Maia, quem também foi o responsável pela aprovação do Auxílio Emergencial durante a pandemia do Covid 19 – como também foram vários os momentos nos quais o Chefe do Poder executivo atuou ativamente para a instabilizar seu próprio governo, participando de atos políticos contra os poderes constituídos, falando impropérios em público, faltando assim com o decoro exigido pelo mais alto cargo da República, e externando publicamente sua falta de paciência com os deveres exigidos a qualquer pessoa que se disponha a servir ao país como Presidente da República. A visão que Bolsonaro passa para o público é de ser um homem mais interessado em aparecer para os seus simpatizantes em eventos pouco ortodoxos, do que alguém que está disposto a “arregaçar as mangas da camisa” e trabalhar duro pelo bem do Brasil.
O segundo obstáculo é dado pela situação atual da economia brasileira. O assim chamado índice de Miséria Econômica, calculado a partir da soma das taxas de inflação e desemprego, encontra-se desde março de 2021 acima do pico observado em agosto de 2016, mês no qual Dilma Rouseff foi definitivamente afastada do cargo de Presidente da República (Ver Figura 1 Abaixo), na série histórica que tem origem em março de 2012.
Fonte: IPEADATA. Elaboração do autor.
Em outubro de 2014, quando Dilma Rouseff foi reeleita para o cargo de Presidente da República, o índice de miséria Brasil encontrava-se em 12,71, muito abaixo dos valores acima de 20 registrados no início de 2022. Importante também observar que o processo de impeachment da Presidenta Dilma Rouseff foi antecedido por um período de crescimento contínuo do índice de miséria, o qual alcançou o nível de 18,42 em dezembro de 2015 (um aumento de quase 50% no índice de miséria em pouco mais de um ano), mês no qual o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aceitou um dos pedidos de impeachment da Presidente da República. Sem esse aumento do índice de miséria seria extremamente improvável, para não dizer impossível, que fosse criado no Brasil o clima político para o impeachment.
Apesar do índice de miséria estar atualmente muito acima dos níveis observados nos meses que antecederam o impeachment de Dilma Rouseff, as pesquisas de opinião tem mostrado não só uma notável resiliência da popularidade de Bolsonaro, como ainda a consolidação de uma intenção de voto que flutua em torno de 30% do eleitorado! Como economista tenho que admitir que essa resiliência de Bolsonaro me intriga. O PIB brasileiro no final de 2021 se encontrava abaixo do nível observado no final de 2013, perfazendo assim quase uma década de estagnação econômica. O padrão de vida da população brasileira, medido pelo PIB per-capita em US$, encontra-se abaixo do valor de 2009, um recuo de quase 15 anos! No entanto, 30% dos eleitores brasileiros não só estão contentes com o governo Bolsonaro, como ainda estão dispostos a lhe dar um novo mandato.
A explicação simplista para esse paradoxo por parte dos assim chamados setores progressistas da sociedade brasileira é de que o Brasil tem 30% de fascistas na sua população, por isso a popularidade de Bolsonaro não cai. Embora eu não duvide da existência de um percentual expressivo de “fascistas” no eleitorado brasileiro, essa explicação não me convence. Isso porque em 2018 Bolsonaro foi bem-sucedido em desviar o foco da discussão política da situação econômica brasileira, marcada por desemprego elevado e miséria crescente, para a “agenda de costumes”. Nesse contexto, Bolsonaro se apresentou como o “mito” que iria salvar o Brasil do (sic) “comunismo” e da degradação moral perpetrada pela “esquerda” contra a família e contra os valores Cristãos do povo Brasileiro.
Lembro de uma conversa que tive em Berlim em outubro de 2019 com meu colega espanhol Jesus Ferreiro, professor da Universidade do País Basco (Espanha), durante um encontro internacional no qual ambos participamos. A conversa fluiu em torno da comparação de Bolsonaro com o Generalíssimo Francisco Franco. A ditadura de Franco durou quase 40 anos na Espanha. O lema de seu governo era “Por Dios y por la Patria”, algo similar ao “Deus acima de tudo e Brasil acima de todos” de Bolsonaro. Mas a comparação entre as duas figuras resultava patética: enquanto Francisco Franco era um militar de carreira, com um currículo invejável de vitórias em campo de batalha, tendo chegado ao posto de General com 33 anos, vencido duas guerras (a Guerra Colonial no Marrocos Espanhol e Guerra Civil Espanhola), ser uma pessoa de poucas palavras e extremamente educado, com um único casamento e católico praticante até a sua morte; Bolsonaro era um militar indisciplinado, reformado do exército por insubordinação quando ainda era tenente, casado três vezes, com filhos fora do casamento, e ainda por cima apóstata, pois recebeu um segundo batismo fora da Igreja Católica. Esse, por assim dizer, currículo torna Bolsonaro a pessoa menos indicada para liderar uma “Revolução Conservadora”. Mas o povo brasileiro enxergou Bolsonaro mais indicado para salvar o Brasil da “degradação moral” do que o “careta” Fernando Haddad.
Bolsonaro é um enigma e é necessário decifrá-lo para que não nos devore. Minha intuição é de que é fundamental abrir os olhos dos eleitores brasileiros para a grave situação econômica do Brasil, que Bolsonaro não só não fez nada para amenizar como ainda tomou e toma atitudes que agravam a mesma por acentuar o isolamento diplomático do Brasil no mundo. O Presidente Franklin Roosevelt certa vez disse que nunca se deve jogar no campo escolhido pelo adversário. Bolsonaro escolheu jogar no campo dos “costumes”, muito embora não seja pessoalmente qualificado para isso. Nós que defendemos a democracia precisamos jogar no campo da economia e atrair Bolsonaro para jogar nesse campo. Se assim o fizermos, com a Graça de Deus, iremos expulsar os “bárbaros” de Roma nas eleições de 2022.
José Luis Oreiro é Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB, Brasil) e do Programa de Doutorado em Integração Econômica da Universidade do País Basco (UPV/Bilbao, Espanha), Pesquisador Nível I do CNPq, Membro da Post Keynesian Economics Society (Reino Unido) e da European Association for Evolutionary Political Economy, Líder e membro do Grupo de pesquisa macroeconomia estruturalista do desenvolvimento cadastrado no diretório dos grupos de pesquisa no CNPq e certificado pela Universidade de Brasília.