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Por José Luis Oreiro

Nas economias monetárias modernas os pagamentos referentes aos contratos a vista ou a termo são realizados majoritariamente por intermédio do sistema bancário através de ordens de transferência eletrônica de fundos entre as contas de depósitos a vista que os agentes possuem no sistema bancário. Apenas uma fração pequena e decrescente dos pagamentos é efetuada em papel-moeda.

Todos os dias ordens de pagamento são emitidas contra contas de depósito a vista mantidas pelos agentes em diferentes bancos comerciais. Dessa forma, ao final do dia, alguns bancos poderão ter um fluxo líquido negativo entre depósitos e saques das contas correntes, ao passo que outros terão um fluxo líquido positivo. Num sistema de crédito puro, ou seja, num sistema em que todos os pagamentos são efetuados por intermédio da transferência eletrônica de depósitos de um banco para o outro, o valor agregado das transferências líquidas é necessariamente igual a zero, pois o depósito que foi transferido de um banco será necessariamente depositado em outro.

Os depósitos a vista são uma obrigação que os bancos emitem contra si mesmos quando concedem um empréstimo. Com efeito, quando um banco comercial avalia que um determinado tomador de crédito é confiável e decide conceder um empréstimo, o valor dele é creditado na conta de depósito a vista do tomador no banco que concedeu o empréstimo. A partir desse momento o tomador pode emitir ordens de pagamento para liquidar obrigações contratuais, transferindo o valor referente as mesmas para as contas de depósito a vista de outros agentes, muitos dos quais podem possuir contas de depósito a vista em outros bancos comerciais.

Embora os bancos possam conceder empréstimos a agentes e instituições não-bancárias por intermédio de obrigações que eles criam contra si mesmos, os pagamentos entre bancos tem obrigatoriamente que ser feitos na moeda corrente da economia (Carvalho, 2015, p.69), cujo monopólio de emissão é do Banco Central. Dessa forma, para viabilizar o funcionamento do sistema de pagamentos, os bancos comerciais precisam manter reservas em moeda corrente no Banco Central para que, no final de cada dia, eventuais saldos negativos entre depósitos e saques de depósitos a vista possam ser zerados com a transferência de reservas dos bancos deficitários para os bancos superavitários.

Num sistema de crédito puro não há vazamentos de depósitos para fora do sistema bancário de maneira que a posição líquida agregada entre depósitos e saques entre bancos comerciais é igual a zero. Nesse tipo de sistema, a princípio os bancos comerciais não teriam muito incentivo para manter grandes reservas no Banco Central porque os bancos deficitários podem tomar emprestado as reservas que necessitam junto aos bancos superavitários no assim chamado mercado interbancário, pagando a taxa de juros relativa a esse tipo de empréstimo. Como todo empréstimo, no entanto, os bancos deficitários precisam apresentar garantias para os bancos superavitários para se habilitarem a tomar emprestado as reservas que necessitam. Caso exista desconfiança quanto a solvência dos bancos deficitários devido a elevada inadimplência dos empréstimos concedidos por eles (non-performing loans), os bancos superavitários podem ter dúvidas sobre a capacidade dos bancos deficitários pagarem os empréstimos, situação na qual a execução das garantias pode se mostrar insuficiente ou até mesmo inviável. Nesse caso, os bancos superavitários irão se mostrar pouco dispostos a emprestar as reservas que os bancos deficitários necessitam, aumentando assim o valor da taxa de juros dos empréstimos entre bancos. Em situações limite de desconfiança a taxa de juros dos empréstimos do mercado interbancário pode se tornar tão elevada a ponto de inviabilizar esses empréstimos, o que resultaria na paralização do sistema de meios de pagamento.  

Esse tipo de situação não é apenas uma curiosidade teórica, mas ocorreu de fato com a erupção da crise financeira internacional de 2008 após a falência do Banco de Investimentos Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008. A figura 6.1 abaixo mostra o comportamento da taxa de juros LIBOR (London Interbank Offered Rate), que consiste na taxa de juros referencial diária, calculada com base na média das taxas de juros oferecidas para grandes empréstimos entre bancos internacionais que operam no mercado de Londres. Entre meados de agosto e início de setembro de 2008 a LIBOR se encontrava num patamar baixo e estável ligeiramente acima de 2% a.a para operações de crédito overnight, ou seja, para empréstimos de um dia. O aumento da percepção de incerteza devido a falência do Lehman Brothers se expressou não só num aumento do significativo da Libor, que aumentou quase 300%, como também numa maior instabilidade dessa taxa até meados de outubro de 2008.

Em situações em que o mercado interbancário colapsa devido a desconfiança mútua entre os bancos, a solução é o Banco Central atuar como emprestador de última instância, ou seja, emprestar as reservas que os bancos deficitários precisam para zerar efetuar os pagamentos devidos aos bancos superavitários. Geralmente, os bancos comerciais podem acessar livremente as linhas de crédito do banco central a taxa de juros fixada pela autoridade monetária. Esse acesso permite que, na maior parte do tempo, as taxas de juros prevalecentes no mercado interbancário apresentem apenas pequenas flutuações em torno da taxa de juros para empréstimos de reservas fixada pelo Banco Central.

A possibilidade de os bancos comerciais tomarem emprestado as reservas que necessitem do Banco Central a taxa por ele estipulada é o pilar central da teoria horizontalista da moeda e do crédito, segundo a qual empréstimos criam depósitos e depósitos criam reservas (Hein, 2008, pp. 44-47). Como o volume de meios de pagamento é constituído por depósitos a vista e reservas bancárias, segue-se que a oferta de moeda é não apenas uma variável endógena como também perfeitamente elástica ao nível da taxa de juros definida pelo Banco Central.

Figura 6.1 Comportamento da Taxa de juros LIBOR expressa em US$ dólar no período compreendido entre 15 de agosto e 31 de dezembro de 2008.

Fonte: USD LIBOR interest rates in 2008 (global-rates.com).

Essa teoria a respeito da endogeneidade da oferta de moeda tornou-se hegemônica entre os economistas pós-keynesianos nos últimos 15 anos, em grande medida devido ao esforço de autores como Marc Lavoie e Louis-Phillipe Rochon em desenvolver os aspectos teóricos e institucionais da teoria horizontalista. Em particular, as duas edições (2014, 2022) do livro “Post-Keynesian Economics: new foundations” de autoria de Marc Lavoie fazem uma apresentação detalhada e bastante convincente da teoria horizontalista.

Uma implicação tácita da teoria horizontalista da moeda e do crédito é uma redução da importância da preferência pela liquidez, elemento central no sistema teórico de Keynes. O equilíbrio com desemprego resulta, como vimos, de uma taxa de juros de longo-prazo excessivamente alta, a qual reflete não apenas as convenções prevalecentes no mercado financeiro a respeito do comportamento futuro da taxa de juros fixada pela autoridade monetária como também a preferência pela liquidez dos agentes que se expressa no prêmio de liquidez dos ativos de longa maturidade relativamente aos ativos de curta maturidade. Para que os agentes estejam dispostos a pagar pela posse de liquidez é necessário, contudo, que a oferta de ativos perfeitamente líquidos não seja ilimitada. A esse respeito Keynes afirma na sua Teoria Geral que:

“(…) É improvável que um ativo, cuja oferta pode ser facilmente aumentada ou cujo desejo pode ser facilmente desviado por uma mudança em seu preço relativo, possua o atributo de liquidez na mente dos donos da riqueza. O próprio dinheiro perde o atributo de liquidez se se espera que sua oferta futura sofra mudanças bruscas” (Keynes, 1936, p. 241, nota de rodapé 1) [Tradução do autor]

No caso dos bancos comerciais em particular, a teoria horizontalista da moeda e do crédito tem uma implicação empiricamente testável, qual seja, os bancos comerciais não irão manter reservas em excesso ao exigido pelo Banco Central dado que podem tomar emprestado as reservas que necessitam junto a autoridade monetária a taxa de juros por ela fixada, quando isso for necessário. O problema é que essa previsão da teoria não é amparada pelos fatos. Como mostra Koo (2022, p. 269), os bancos comerciais privados dos Estados Unidos, Japão, área do Euro e Reino Unido aumentaram significativamente as reservas voluntárias nos seus respectivos bancos centrais desde 2008. Em 2021 as reservas voluntárias representavam, 15.9% do PIB nos Estados Unidos, 85,9% do PIB no Japão, 29.8% do PIB na área do Euro e 40,9% do PIB no Reino Unido. Dados do Federal Reserve a respeito das reservas emprestadas para os bancos comerciais americanos no período 1959-2020 mostram que os bancos comerciais só recorrem ao empréstimo de reservas no Banco Central apenas em situações emergenciais (Koo, 2022, p. 354). A evidência empírica disponível, portanto, mostra que Bancos possuem preferência pela liquidez, a qual se expressa num montante significativo de reservas voluntárias mantidas no Banco Central.

A figura 6.2 abaixo mostra o comportamento das reservas bancárias em excesso ao mínimo exigido pelo Federal Reserve no período compreendido entre janeiro de 2000 e janeiro de 2020. É interessante observar que no período pré-crise financeira internacional de 2008 o volume de reservas bancárias em excesso no Federal Reserve era muito pequeno, inferior a 5% das reservas totais dos bancos comerciais. O único ponto fora do padrão se observou em setembro de 2001, o qual pode ser facilmente explicado pelo aumento da percepção de incerteza derivado do ataque as torres gêmeas em Nova Iorque no dia 11 de setembro de 2001. Essa situação muda radicalmente a partir de setembro de 2008, quando a razão entre as reservas excedentes e as reservas totais dos bancos comerciais depositadas no Federal Reserve aumenta para mais de 80%, num contexto em que a Fed Funds Rate foi reduzida para patamares próximos a zero por centro ao ano. Esse comportamento é uma clara evidência de que os bancos possuem preferência pela liquidez pois estão dispostos a manter grandes quantidades de ativos perfeitamente líquidos (as reservas bancárias) mesmo quando a remuneração delas é praticamente nula.

Fonte: Federal Reserve Economic Data (https://fred.stlouisfed.org). Elaboração do autor a partir dos dados coletados por Vitor Dotta.

Embora nas economias monetárias modernas a maior parte das transações sejam efetuadas por intermédio da transferência eletrônica de depósitos entre os bancos comerciais, uma pequena, mas ainda relevante parte dos pagamentos é feita em espécie. Isso significa que podem ocorrer vazamentos de depósitos para fora do sistema bancário caso o volume de saques de dinheiro em espécie seja superior ao volume de depósitos em papel-moeda feitos num determinado dia. Como os bancos comerciais não emitem a moeda legal, apenas um substituto próximo para ela que é o depósito a vista, então haverá uma saída líquida de recursos das reservas bancárias junto ao Banco Central para o público na forma de dinheiro em espécie. Para lidar com a diferença diária entre saques e depósitos em espécie, os bancos comerciais mantem uma parte de suas reservas em dinheiro nas agências bancárias. A atuação do Banco Central como emprestador de última instância garante que qualquer correntista poderá sacar o valor integral de seus depósitos a vista em espécie se assim o desejar, razão pela qual o papel-moeda e os depósitos a vista são tidos pelo público como substitutos perfeitos, e a proporção de moeda mantida na forma de dinheiro em espécie explica-se apenas pelos custos de transação associados a pequenos pagamentos. Em outras palavras, se o público confiar na capacidade e disposição das autoridades monetárias em garantir a conversibilidade dos depósitos a vista em papel-moeda a taxa de 1:1 então não haverá nenhum motivo para uma corrida bancária, ou seja, uma situação em que os depositantes tentam sacar seus depósitos a vista o mais rapidamente possível dos bancos comerciais antes que os saques sejam suspensos por falta de liquidez. No entanto, um episódio de corrida bancária ocorreu em setembro de 2007 com o Northern Rock Bank no Reino Unido após o Banco receber uma assistência emergencial de liquidez do Banco da Inglaterra, a qual foi comunicada ao público. Os depositantes fizeram então enormes filas na sede do banco na tentativa de retirar seus depósitos, originando a primeira corrida bancária no Reino Unido em 150 anos.

Em suma, a teoria horizontalista da moeda e do crédito tem implicações a respeito do comportamento dos bancos comerciais que não são respaldadas pelos fatos observador. A citação abaixo de Koo (2022, p. 361) é bastante clara sobre isso.

“Para contrair empréstimos junto ao FED, os bancos também tiveram de apresentar garantias de alta qualidade para garantir que os fundos dos contribuintes não fossem colocados em risco. Embora muitos economistas sem experiência em supervisão bancária, incluindo aqueles sobre a folha de pagamento dos bancos centrais, muitas vezes falem como se as reservas estivessem disponíveis gratuitamente do banco central à taxa de juros em vigor, qualquer banco que contraia empréstimos do banco central enfrenta uma miríade de custos, e aqueles que tomam empréstimos com muita frequência encontrarão auditorias extremamente desagradáveis. Isso explica por que as reservas emprestadas constituíam apenas 0,86% das reservas bancárias antes do lançamento do QE em 2008. (…) A noção de que um banco pode criar dinheiro do nada porque o Banco Central está sempre pronto para fornecer reservas “sob demanda” é, portanto, absurda” [tradução do autor]

Referências

Carvalho, F.C. (2015). Liquidity Preference and Monetary Economies. Routledge: Londres.

Hein, E. (2008). Money, Distribution Conflict and Capital Accumulation. Palgrave Macmillan: Londres.

Keynes, J,M. (1936). The General Theory of Employment, Interest and Money. Cambridge University Press: Cambridge.

Koo, R. (2022). Pursued Economy: undestanding and overcoming the challenging new realities for advanced economies. Wiley: West Sussex.

Lavoie, M. (2022). Post-Keynesian Economics: New Foundations. Edward Elgar: Cheltenham.