Nos ultimos meses tem ocorrido uma “revolução silenciosa” na condução da política monetária pelo Banco Central do Brasil. Após vários anos de pura ortodoxia – e subserviência aos interesses do sistema financeiro – sob a gestão Henrique Meirelles, observam-se alguns sinais de mudança na gestão do sistema de metas de inflação no Brasil.

A primeira mudança, realizada ainda no final de 2010, foi o uso de instrumentos não convencionais, como o aumento do depósito compulsório e do requerimento de capital dos bancos para empréstimos de longo-prazo como forma de se produzir uma redução do ritmo de expansão do crédito – e assim reduzir o crescimento da demanda agregada – ao invés de um aumento da taxa básica de juros, a Selic. Essa mudança representa um afastamento importante com respeito ao “consenso macroeconômico” que estabelece que a política monetária deve ser gerida com base no ajuste da taxa de juros de curto-prazo com vistas a obtenção de uma meta inflacionária de médio prazo. Segundo a visão do “consenso macroeconômico” o ajuste da taxa de juros de curto-prazo impacta a taxa de inflação por intermédio de seus efeitos sobre a demanda agregada e sobre as expectativas de inflação, fazendo com que a inflação convirga para a meta.  O efeito sobre a demanda agregada seria indireto e se daria por uma série de canais ou mecanismos de transmissão. Em primeiro lugar, uma elevação da taxa de juros de curto-prazo produziria, numa economia aberta com câmbio flutuante, uma valorização da taxa de câmbio, a qual desestimularia as exportações e aumentaria as importações, reduzindo assim a demanda agregada pelo lado do saldo da balança comercial. Um segundo mecanismo seria por intermédio da “curva de juros”: um aumento da taxa de juros de curto-prazo, ceteris paribus, levaria a um aumento da taxa de juros de longo-prazo, de acordo com a “teoria das expectativas” da estrutura a termo da taxa de juros. A elevação da taxa de juros de longo-prazo teria o efeito de deprimir o investimento em capital fixo e o investimento residencial, desestimulando assim a demanda agregada. Um terceiro mecanismo seria pelo “canal do crédito”. A elevação da taxa de juros de curto-prazo aumentaria o custo de oportunidade dos empréstimos bancários levando os bancos comerciais a substituir os empréstimos por títulos indexados a taxa básica de juros (as LFT´s e as operações compromissadas)  em suas carteiras de ativos. Dessa forma, haveria uma contração do crédito bancário, o qual ficaria mais caro (via aumento dos spreads) como também mais escasso (aumento do racionamento de crédito). A contração do crédito levaria a uma redução do ritmo de crescimento do consumo das familias, desestimulando assim a demanda agregada. Deve-se ressaltar, contudo, que o canal do crédito sempre foi visto no Brasil, pelo menos até recentemente, como de importância secundária para o impacto de uma elevação da selic sobre a demanda agregada, por conta da reduzida participação do crédito bancário no PIB quando comparado com os valores prevalecentes no resto do mundo, mesmo entre países em desenvolvimento.

Devido a institucionalidade peculiar prevalecente na gestão da dívida pública brasileira, com a prevalência de uma parcela significativa de títulos públicos indexados pela taxa básica de juros, elevações da selic tem impacto imediato e significativo sobre o custo de rolagem da dívida pública. Supondo um estoque de R$ 1800 bilhões para a DMF e uma participação de 35% de títulos indexados a Selic, temos um total de R$ 630 bilhões em dívida pública atrelada a evolução da Selic. Nesse contexto, cada 100 pontos de elevação da selic significa um acréscimo de R$ 6,3 bilhões na conta de encargos financeiros sobre a dívida pública, valor esse que será apropriado pelos bancos e pelos rentistas no Brasil e no exterior, sem falar dos economistas que trabalham no setor financeiro, cujas remunerações estão atreladas, direta ou indiretamente, ao resultado da Tesouraria dos bancos !!! Um aumento de 300 pontos base, como parece ser consensual no atual ciclo de aperto monetário, representa um acréscimo de R$ 19 bilhões na conta de juros. Face a esses números não é de estranhar que no Brasil exista uma forte coalização de interesses favorável ao aumento de juros.

A utilização de instrumentos não convencionais de política monetária representa não só uma quebra do consenso macroeconômico como também, e principalmente, uma sinalização de que o BCB pode estar se tornando autônomo com respeito aos interesses do sistema financeiro. Supondo que os instrumentos não convencionais sejam igualmente eficazes para o controle da inflação do que o ajuste da taxa básica de juros – e existem razões para acharmos que são mais eficazes e  não menos – o seu uso não tem como contra-partida um aumento direto dos encargos financeiros da dívida pública e, portanto, não geram redistribuição de renda da sociedade como um todo para o sistema financeiro e os rentistas.

A segunda mudança refere-se a importância dada as expectativas de inflação ne gestão da política monetária. Segundo o “consenso macroeconômico” a ancoragem das expectativas de inflação é peça fundamental na gestão do regime de metas de inflação. Em tese, se os agentes tiverem plena confiança no compromisso do BC em manter a inflação na meta – e na ausência de rigidezes de qualquer natureza – o custo da desinflação será zero em termos de perda de produto e emprego. Dessa forma, o BC deve estar atento as expectativas de inflação, procurando tomar medidas de política monetária que preservem a sua credibilidade junto ao público, evitando assim um aumento das expectativas de inflação, o qual tornaria mais custosa a obtenção da meta inflacionária.

O problema com esse raciocínio é que no Brasil o sistema de coleta das expectativas de inflação é bastante peculiar. Segundo matéria publicada no Valor Econômico de hoje (Radical juste de juros alimenta expectativa de mudança no Focus) , o Brasil é possivelmente um dos poucos países adotantes do Regime de Metas de inflação que fazem coleta semanal de expectativas de inflação. Segundo um participante do mercado financeiro “isso é uma distorção que faz com que o Banco Central perca autonomia em relação ao próprio mercado, mesmo mantendo-a com relação ao governo”. Esse sistema de coleta semanal de expectativas junto ao “mercado” dá margem para a criação de um clima de “terrorismo inflacionário” no qual a deterioração dos índices de inflação de curto-prazo (causados por fatores como aumento dos preços das commodities internacionais, sazonalidade dos índices e etc)  gera uma piora constante das expectativas de inflação por um certo período de tempo (3 a 4 meses), criando uma atmosfera de “descontrole inflacionário” a qual leva a uma pressão política por um imediato (e rápido) ajuste da taxa de juros.  

O BCB na gestão Tombini tem se mostrado menos propenso a levar a sério as expectativas inflacionárias, realizando pesquisas adicionais sobre temas variados. Alem disso, a forte deterioração das expectativas inflacionárias para 2011 aparentemente não gerou nenhuma preocupação adicional com o curso da política monetária pelo BCB.

Se na reunião desta semana do COPOM for decidido um aumento de 0,5 p.p na taxa básica de juros, então ficará bem claro que o mercado financeiro perdeu a sua capacidade de influenciar o BCB por intermédio do mecanismo das expectativas de inflação. Terá sido dado um passo importante para a efetiva autonomia do Banco Central … autonomia com relação aos interesses do sistema financeiro.