O excelente artigo do Prof. Yoshiaki Nakano (EESP/FGV) publicado no Valor Econômico de ontem argumenta que a política monetária só deve reagir a uma situação de elevação da inflação causada “pelos aumentos sincronizados dos preços das commodities” no caso em que os salários nominais estão totalmente indexados a inflação de commodities (principalmente alimentos) e as empresas estão em condições de repassar esses aumentos para os preços. Essa situação de indexação plena de preços e salários, por sua vez, seria o resultado de um “estado de pleno-emprego”. Aparentemente esse seria o caso brasileiro na interpretação do Banco Central do Brasil com base na ata da ultima reunião do Copom, realizada nos dias 18 e 19 de janeiro.

O artigo do prof. Nakano  é uma excelente oportunidade de aprofundarmos o debate sobre a natureza do processo inflacionário em economias monetárias (até porque é impossível discutir inflação numa economia sem moeda, como um ou outro livro de “ficção cientifica” travestida de hard science tentam fazer crer aos incautos estudantes de pós-graduação de centros ortodoxos) , o que é particularmente importante para o caso brasileiro atual.  A discussão feita a seguir é baseada no arcabouço teórico pós-keynesiano.

Uma questão pertinente no debate brasileiro atual refere-se a se a elevação observada nos índices de inflação reflete unicamente os aumentos sincronizados dos preços das commodities nos mercados mundiais (resultado do excesso de liquidez criado pelo FED por intermédio do QE2) ou se, no caso brasileiro, o excesso de demanda doméstico é mais relevante para explicar o repique inflacionário recente.

 Para os economistas pós-keynesianos, uma situação de excesso de demanda agregada só pode produzir uma pressão altista nos índices de preços no mercado à vista (spot) (Davidson, 2006, pp. 693-694). Se os preços do mercado à vista são mais elevados do que os preços no mercado futuro (forward), um ajuste de quantidades irá ocorrer, de modo a garantir a eliminação da inflação produzida pelo excesso de demanda (Ibid, p. 697). Preços no mercado futuro, no entanto, não são influenciados pelas condições de demanda, mas determinado pelo fluxo de oferta dos bens e serviços, que dependem das margens de lucro desejadas pelos empresários e de salário real desejadas pelos sindicatos. Isto significa que um persistente aumento do nível de preços só pode ocorrer como resultado de um conflito distributivo entre salários e lucros (Ibid, p.699).

Estas são as bases da chamada visão estruturalista da inflação[1], a qual determina que a taxa de inflação resulta de um conflito entre os trabalhadores e capitalistas acerca da distribuição da renda e dos custos de fatores como o preço de matérias–primas e petróleo (Arestis e Sawyer, 2005). Nesta abordagem, se a meta de salário dos trabalhadores e a meta de mark-up das firmas são exogenamente determinadas, a taxa de inflação é insensível à variações na taxa de juros de curto prazo determinados pelos BCs (Palley, 1996, p.182). De modo geral, entretanto, como a meta de salário e meta de margem de lucro são sensíveis à variações na taxa de desemprego, uma política monetária restritiva pode induzir os sindicatos a aceitarem metas de salário  mais baixas para os salários reais e/ou induzir os empresários a aceitarem uma margem de lucro menor, reestabelecendo o equilíbrio da distribuição da renda e interrompendo o processo de aceleração da inflação.

A taxa de desemprego que compatibiliza as demandas dos trabalhadores e das firmas pela distribuição da renda nacional é denominada de NAIRU (non-accelerating inflation rate of unemployment). Trata-se de um conceito totalmente diferente da Taxa Natural de Desemprego de Milton Friedman. Isso porque, em primeiro lugar, a NAIRU pressupõe uma economia que opera, no mínimo, em condições de concorrência imperfeita ou oligopólio, ao contrário do paradigma da concorrência perfeita explicitado na definição de taxa natural de Friedman. Em segundo lugar, essa taxa não é um centro de gravidade para o qual o sistema econômico tende naturalmente a convergir no longo-prazo. A economia só irá operar com uma taxa próxima a NAIRU se a política monetária for calibrada para esse fim, não se trata, portanto, de um resultado de mercado. Por fim, não existe nenhuma relação entre a NAIRU e o conceito de pleno-emprego da força de trabalho. Com efeito, ao nível de desemprego dado pela NAIRU podem existir mais trabalhadores dispostos a trabalhar ao salário de mercado do que empregos disponíveis. A taxa de desemprego que compatibiliza as demandas de firmas e sindicatos pela distribuição da renda nacional é, via de regra, superior a taxa de desemprego que equaliza a produtividade marginal do trabalho com a desutilidade marginal do mesmo (em termos mais formais a curva de wage setting se situa, em geral, acima da curva de oferta de trabalho no plano salário real-emprego).

Isso posto, não é necessário que a economia brasileira esteja operando com “pleno-emprego” para que se observe uma elevação persistente dos índices inflacionários. Basta que a taxa de desemprego efetiva esteja abaixo da NAIRU da economia brasileira. Se esse for o caso prevalecente no Brasil hoje (o que é uma questão empírica, e não teórica), e se o único instrumento de controle inflacionário a disposição do governo for a taxa de juros, então o BCB deverá elevar a taxa básica de juros no nível suficiente para esfriar a economia a ponto de colocar a taxa de desemprego efetivo novamente em linha com a NAIRU.   

Os custos dessa política, todavia, são elevados. Conforme afirma Paul Davidson:

“(…) a política monetária do banco central está implicitamente praticando uma política de renda baseada no ‘medo’ de perda de postos de trabalho e receitas de vendas das firmas que produzem bens e serviços domésticos” (Davidson, 2006, p.701).

Para os economistas pós-keynesianos uma política mais adequada de controle de inflação decorrente do conflito distributivo entre salários e lucros deve ser a adoção de algum tipo de política de rendas que propicie a conciliação entre as demandas dos capitalistas e dos trabalhadores por outros meios que não resulte em um  aumento na taxa de desemprego (Ibid, p.700)[2]. Embora uma política monetária restritiva possa ser usada para reduzir a taxa de inflação numa situação onde as metas de salários reais e de mark-up são sensíveis às mudanças na taxa de desemprego, a redução da taxa de inflação deverá ser acompanhada por uma política de renda que equalize ambos os objetivos a um baixo nível de desemprego.  

Isso posto, o governo da Presidente Dilma Rouseff poderia aproveitar as boas relações que possui com as centrais sindicais para tentar implantar uma política de rendas no Brasil, a qual seria complementar a política de juros na tarefa de controle do processo inflacionário. Essa política de rendas viabilizaria uma redução da NAIRU haja vista que permitiria uma compatibilização negociada das demandas de sindicatos e firmas pela distribuição da renda existente, sem recurso ao “medo do desemprego” como mecanismo disciplinador dos agentes. A adoção desse tipo de política seria um gesto ousado da Presidente eleita, mas perfeitamente compatível com sua militância de esquerda e com o partido do qual ela é filiada. Para isso, no entanto, é necessário que, mais uma vez, “a esperança vença o medo”.


[1] De acordo com Rowthorn (1999, p.3), um dos fundadores da visão estruturalista da inflação, essa teoria pode ser resumida da seguinte forma: “i) a inflação não antecipada é o resultado de demandas inconsistentes sobre a renda total da economia; ii) a inflação não antecipada não pode ser sustentada de forma permanente porque, se isso ocorrer, haverá uma aceleração explosiva da taxa de inflação; iii) para prevenir variações não antecipadas da taxa de inflação é necessário que as demandas ex-ante pela renda total da economia sejam mutuamente consistentes e, ao serem adicionadas, sejam equivalentes a renda total. Essa consistência é obtida por intermédio de variações no nível de atividade econômica, particularmente por variações da taxa de desemprego e de sua influência sobre a determinação dos salários (e do preços); iv) A taxa de desemprego para a qual a inflação permanece constante ao longo do tempo (a NAIRU) é a taxa de desemprego que elimina a inflação não antecipada”.

[2] Um exemplo de política de renda são os “impostos baseados na política de rendas” (“Taxes Based Income Policy” – TIP), sugerida por Weintraub (1958). A TIP determina a adoção de uma estrutura tributária sobre a renda que penalize as maiores empresas domésticas de um país se elas concordarem em aumentar a taxa de crescimento dos salários em excesso em relação a algum índice nacional de aumento da produtividade (Davidson, 2006, p. 702).