José Luis Oreiro e Fabrício Missio
    19/07/2010
Texto: A- A+

Share/Save/Bookmark

As perdas que a classe trabalhadora terá, no curto prazo, com a desvalorização cambial serão compensadas, no longo prazo, por um crescimento econômico mais acelerado

O item da agenda macroeconômica brasileira que tem despertado maior debate recente é o papel da taxa de câmbio. A questão é se o governo deve ou não incorporar a taxa de câmbio na sua “função objetivo”, de forma a mantê-la competitiva e estável. Argumenta-se que a resposta é “sim”, uma vez que a administração da taxa de câmbio é de fundamental importância para o crescimento de longo prazo, pois influencia a heterogeneidade produtiva da economia e permite superar o problema da heterogeneidade estrutural, essencial ao crescimento sustentável no longo prazo.

O problema da heterogeneidade estrutural, como apontado pelo pensamento estruturalista latino-americano, está ligado à existência de um núcleo dinâmico restrito a um setor primário exportador relativamente moderno associado a alguns segmentos industriais e de serviços em meio a uma estrutura ocupacional degradada e com elevado desemprego, definindo assim uma estrutura produtiva que é, ao mesmo tempo, especializada e heterogênea. Em outras palavras, a heterogeneidade estrutural refere-se aos desníveis tecnológicos e de produtividade dentro da estrutura produtiva da economia, os quais resultam do baixo ritmo de acumulação de capital, da adoção de tecnologias inadequadas e das disparidades da capacitação da força de trabalho. A questão relevante a ser ressaltada é que boa parte desses elementos é influenciada pela taxa de câmbio, sobretudo, no que tange à tecnologia e a inovação.

A tecnologia é o elemento primordial no crescimento de longo prazo à medida que as melhorias das técnicas de produção proporcionam aumentos de produtividade, os quais permitem reduzir a heterogeneidade estrutural. Ademais, a mudança estrutural pode ser promovida pela própria acumulação de capital, a qual conduz a uma redução no hiato tecnológico, uma vez que as novas tecnologias se encontram, via de regra, incorporadas (“embodied”) em novas máquinas e equipamentos. A acumulação de capital, por sua vez, depende criticamente da política macroeconômica, em especial, da adoção de uma taxa de cambial que priorize a manutenção da competitividade da produção industrial nacional.

Para os economistas ortodoxos um câmbio real valorizado poderia acelerar o ritmo de progresso técnico na economia uma vez que permitiria o acesso aos bens de capital e à tecnologia a um menor custo no exterior, o que levaria à modernização do parque produtivo. Esse efeito positivo do câmbio sobre o ritmo de progresso técnico, contudo, está limitado aos setores “tradables” que operam com elevados níveis de “mark up”. No caso dos países em desenvolvimento, esses setores estão, invariavelmente, associados à produção de commodities.

Dado que a valorização do câmbio real está associada a uma redistribuição (temporária) de renda dos lucros em prol dos salários, segue-se que a apreciação cambial implica numa redução da capacidade de autofinanciamento das empresas, reduzindo assim a disponibilidade de fundos próprios para aquisição de novas tecnologias, o que reduz também o acesso das firmas ao financiamento de terceiros devido às assimetrias de informação existentes nos mercados financeiros, que geram racionamento de crédito.

Dessa forma, mesmo diante da possibilidade de aquisição de tecnologia mais baratas no exterior, é provável que os diversos setores produtivos mantenham-se incapacitados de investir na modernização da sua capacidade produtiva haja vista a escassez de autofinanciamento e o racionamento de crédito nos mercados financeiros.

A manutenção de um câmbio real competitivo, por sua vez, representa a possibilidade de se estabelecer incentivos ao avanço do progresso tecnológico. Mais especificamente, a desvalorização cambial altera a disponibilidade de fundos que as empresas dispõem para realizar seus projetos de investimentos relacionados à pesquisa e inovação. Assim, é de se esperar que as empresas empreendam atividades inovativas que resultem em uma maior heterogeneidade produtiva (maior número de tipos diferentes de bens produzidos) e, também, em uma homogeneização estrutural, visto que agora o progresso técnico é incorporado também por setores que não estão vinculados ao mercado externo.

Deve-se considerar também que variações na política cambial afetam negativamente os salários. Quando ocorre um aumento dos salários reais, os setores que já competem com desvantagens no mercado internacional, dado o baixo conteúdo tecnológico incorporado em seus produtos, perdem mercados ou deixam de existir, forçando a economia a se especializar em setores onde existem vantagens comparativas naturais. Para países em desenvolvimento, isso significa a especialização na produção de bens intensivos em recursos naturais. Acontece que a elasticidade-renda da demanda por exportações desses produtos é baixa, o que significa que a especialização nesses setores diminui a taxa de crescimento que é compatível com a restrição de balanço de pagamentos. Por seu turno, uma redução nos salários reais, por intermédio da desvalorização cambial, leva a uma maior diversificação produtiva, o que no longo prazo representa uma maior capacidade de exportar e uma menor dependência das importações.

Em síntese, a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva é essencial para a retomada do crescimento sustentável da economia brasileira, sobretudo, pelos seus efeitos diretos e indiretos sobre a estrutura produtiva. As perdas que a classe trabalhadora terá, no curto prazo, com a desvalorização cambial serão compensadas no longo prazo por um crescimento econômico mais acelerado, o qual viabiliza um crescimento mais rápido da produtividade e, portanto, dos salários reais. Aqui nos deparamos com o grande problema da economia política da desvalorização cambial: convencer os trabalhadores e a sociedade como um todo de que os ganhos de longo prazo de uma taxa de câmbio mais desvalorizada superam, em muito, as perdas de curto prazo da desvalorização cambial.

José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB e diretor da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: joreiro@unb.br.

Fabrício Missio é doutorando pelo Cedeplar/UFMG e membro da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: fabriciomissio@gmail.com.