Como bom keynesiano confesso que tenho aversão a dois vícios da ortodoxia, a saber: a ênfase em posições de equilíbrio de longo-prazo e raciocínios baseados em petição de princípio. O longo-prazo é definido em economia como um intervalo de tempo longo o suficiente para que todos os ajustamentos se completem. Via de regra, tratam-se de resultados assintóticos, ou seja, resultados que valem para t -> infinito, em geral irrlevantes para a formulação de política econômica, pois o horizonte temporal da mesma se estende, no máximo, por algumas décadas. Foi por isso que Keynes cunhou a sua famosa frase “a longo-prazo estaremos todos mortos”, indicando com isso a irrelevância do conceito de equilíbrio de longo-prazo, definido dessa forma, para a formulação de políticas econômicas. A petição de princípio ocorre quando as condições para a validade de um determinado resultado não são demonstradas de forma adequada, apelando-se para apriorismos como “o  sistema de preços resolve o desequilíbrio” , “no longo-prazo a economia converge para o pleno-emprego” e etc. Muitos dos resultados ortodoxos, principalmente os que dizem respeito a questão do câmbio, se baseiam direta ou indiretamente nesses “princípios”.

Quando escrevi o post intitulado “o câmbio e a ingenuidade da ortodoxia brasileira” tinha em mente fazer uma crítica construtiva ao excelente artigo dos Professores Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli no Valor Econômico, o qual é uma bela representação da posição ortodoxa da relação entre poupança e câmbio real. Para os professores da EPGE a política pública adequada para se obter uma taxa real de câmbio depreciada no longo-prazo é um aumento da taxa de poupança privada por intermédio de reformas estruturais que aumentem a “frugalidade” das famílias. A essência da argumentação de Cavalcanti e Fragelli se baseia, portanto, na existência de uma relação de causalidade positiva da taxa de poupança doméstica para a taxa real de câmbio. Na minha crítica a argumentação aos professores da EPGE eu me limitei a questionar a direção da causalidade proposta pelos autores: na minha visão de mundo, compartilhada pelos novo-desenvolvimentistas, o câmbio é variável exógena (determinada pela política macroeconômica) e a poupança a variável endógena. Mas a mudança na relação de causalidade não implicava numa mudança no sinal da relação, uma vez que uma taxa de câmbio mais depreciada (em função de uma política deliberada de desvalorização da moeda por intermédio de operações de compra de reservas internacionais como faz a China)  gerava, por intermédio do mecanismo da distribuição funcional da renda, um aumento da taxa de poupança doméstica, produzindo assim o fenômeno da “substituição de poupança externa” por poupança doméstica, enfatizado por Bresser-Pereira em seus escritos.

Mas a vida é um contínuo aprendizado. Eu não imaginava que existem autores ortodoxos (um auto-intitulado “tio O”) que acreditam que para desvalorizar a taxa de câmbio deve-se fazer justamente o contrário do que é defendido por Fragelli e Cavalcanti, ou seja, deve-se reduzir (isso mesmo reduzir !!!) a taxa de poupança. Para quem foi treinado na velha tradição dos modelos IS-LM-BP (ver McCallun, 1996) é um resultado pra lá de estranho, mas pode ser adequadamente fundamentado por intermédio de modelos inter-temporais tão em voga hoje em dia. O raciocínio é de uma simplicidade inacreditável: se a poupança doméstica aumenta hoje, mantido o investimento inalterado, então o déficit em conta-corrente deve diminuir (o que é verdade do ponto de vista puramente contábil). Se o déficit em conta-corrente diminui então o endividamento externo líquido de equilíbrio de longo-prazo também deve cair, o que diminui a renda líquida enviada para o exterior na forma de juros e dividendos no equilíbrio de steady-state. Dessa forma, abre-se espaço para uma redução do saldo da balança comercial, já que o déficit em conta-corrente é igual, por definição, ao saldo comercial mais a renda líquida enviada para o exterior. Mas para que o saldo comercial se reduza é necessário uma apreciação da taxa real de câmbio. Como no equilíbrio de longo-prazo não existe, por definição, desalinhamento cambial, daqui se segue que um aumento da taxa de poupança doméstica irá, no longo-prazo, produzir uma apreciação tanto da taxa real de câmbio de equilíbrio como da taxa real de câmbio de equilíbrio de mercado. Como corolário direto dessa argumentação segue-se que, no longo-prazo, os países que pouparem mais (como a China) terão uma taxa de câmbio mais apreciada e, portanto, serão menos competitivos no cenário internacional !!!!! 

Creio que é auto-evidente para o leitor que o raciocínio acima envolve um claro reductio ad absurdum, pois nesse caso os países asiáticos, que possuem elevadissimas taxas de poupança doméstica, deveriam apresentar um câmbio apreciado e reduzidos superávits comerciais (aliás sugiro que  o “Tio O” apresente alguma evidência empírica de que elevadas taxas de poupança doméstica estão correlacionadas, no longo-prazo,  com taxas reais de câmbio apreciadas). A razão para o absurdo desse raciocínio se encontra precisamente na ênfase em posições de equilíbrio de longo-prazo e no uso indiscriminado de petições de princípio.

A ironia de toda essa estória é que o ponto em debate entre ortodoxos e heterodoxos é saber se uma elevada taxa de poupança doméstica é condição necessária para a obtenção de uma taxa de câmbio depreciada ou competitiva. Para os professores Cavalcanti e Fragelli a resposta é sim, pois uma elevada taxa de poupança é necessária para se obter uma depreciação da taxa de câmbio de equilíbrio (de curto-prazo?). Para os heterodoxos, como eu, a resposta é não porque a relação de causalidade não é da poupança para o câmbio real, mas do câmbio real para a poupança. Mas para ortodoxos como o tal do “tio O” , tanto os heterodoxos, como eu , como os ortodoxos, como Cavalcanti e Fragelli, estão errados. Esqueçam essa baboseira de relação positiva entre câmbio real e poupança, pois é auto-evidente (com base nos modelos inter-temporais) que a relação é negativa, ou seja, para se obter um câmbio depreciado deve-se reduzir a taxa de poupança. Logo, esqueçam esse papo furado de aumentar a frugalidade das famílias (via reforma de previdência) ou completar o ajuste fiscal. A política certa para o longo-prazo é estimular as pessoas a consumir mais e os governos a gastar mais … Nesse contexto, parafraseando o Presidente dos Estados Unidos, Hugo Cháves é o cara. A revolução bolivariana é o caminho para se obter uma taxa de câmbio depreciada e competitiva no longo-prazo.