O tema da desigualdade na distribuição de renda e de riqueza está definitivamente no centro do debate público nos países desenvolvidos. A publicação do magnífico livro de Piketty (2014) chamou a atenção para o fato de que o período compreendido entre 1950 e 1973, denominado de “idade de ouro” do capitalismo, no qual elevadas taxas de crescimento econômico foram conjugadas com melhorias na distribuição de renda e de riqueza e aumento do padrão de vida das classes trabalhadoras; pode ter sido uma aberração na história do capitalismo. Mais recentemente, Stigllitz (2016), embora não endosse a tese de que a desigualdade crescente da distribuição de renda seja um traço geral do capitalismo, mas apenas de uma variante do mesmo (o que ele chama de “falso capitalismo”); argumenta que a combinação da desregulamentação financeira em conjunto com a redução dos impostos sobre os lucros das corporações e sobre a renda dos mais ricos tem levado a uma desigualdade crescente na distribuição de renda e de riqueza nos Estados Unidos, a qual não tem paralelo entre os países desenvolvidos. Essa seria a razão do fim do “sonho americano”, pois as possibilidades de ascensão social nos Estados Unidos são hoje mais baixas do que “na velha e calcificada Europa”, expressão usada correntemente por G.W. Bush.
No Brasil não são poucas as vozes, mesmo entre os economistas, a dizer que a desigualdade na distribuição de renda não é um tema relevante. Alguns afirmam que o que importa para o bem-estar da população é o crescimento econômico e que preocupações distributivas são fruto da “inveja”. Nesse contexto, não importa que os ricos fiquem cada vez mais ricos, pois a riqueza criada no topo da pirâmide da distribuição de renda acaba por deslizar para a base da mesma; fazendo com que todos melhorem de vida. Trata-se da assim chamada “Tricke-Down Economics”. Outros, mais radicais, afirmam que qualquer tentativa de melhorar a distribuição de renda acabará por “distribuir a miséria” pois acabará por afugentar os investimentos, reduzindo assim o crescimento econômico.
Não há duvida de que sem crescimento econômico sustentado, ou seja, aquele que está baseado no aumento contínuo da produtividade do trabalho, é impossível uma melhoria persistente no padrão de vida da população. Contudo, os defensores da assim chamada “trickle-down economics” erram ao não diferenciar uma situação na qual a desigualdade é constante ao longo do tempo da situação na qual a desigualdade é crescente ao longo do tempo (que é o que está acontecendo atualmente nos Estados Unidos e, num menor ritmo, nos demais países desenvolvidos). A primeira situação é compatível com uma melhoria contínua do padrão de vida da população como decorrência do crescimento econômico; mas a segunda não. Daqui se segue que a adoção de políticas que visem, pelo menos, estancar o crescimento da desigualdade econômica são fundamentais para fazer com que os frutos do progresso econômico sejam compartilhados por todos.
Para explicar esse ponto vou fazer uso de um pequeno exemplo numérico. Consideremos um país que possui uma população de 300 pessoas, onde a renda nacional é de 15.000 unidades monetárias, a renda nacional cresce a taxa anual de 2,2% e a população cresce a taxa 1% ao ano. Considere que no ano zero o grupo dos 1% mais ricos (os “ricos”) se apropriam de 13% da renda nacional e os restantes 99% (o “povo”) se apropria de 87% da renda nacional. Por fim, vamos supor que a cada ano 1% da renda nacional é transferida do “povo” para os “ricos” seja por ganhos de capital não tributados, seja por isenções fiscais ou qualquer outro mecanismo de rent-seeking. A evolução da renda per-capita do país, da renda per-capita do 1% e da renda per-capita dos 99% é apresentada na Tabela abaixo.
Nas condições apresentadas neste exemplo numérico, observamos que embora a renda per-capita do país tenha aumentado a taxa de 1,2 % ao ano durante 10 anos, o aumento na desigualdade na distribuição de renda durante esse período fez com que a renda per-capita do “povo” tenha permanecido estagnada; ao passo que a renda per-capita dos “ricos” aumentou a taxa de 9,9% ao ano, um ritmo Chinês de crescimento!
Esse exemplo numérico não é um devaneio teórico, mas apresenta de forma estilizada a experiência da economia dos Estados Unidos desde o início dos anos 1990 até a eclosão da grande crise financeira de 2008 (Stiglitz, 2016, p.75-80).
A partir dos dados apresentados na tabela acima fica claro que o crescimento econômico não é condição suficiente para a ocorrência de uma melhoria generalizada no padrão de vida da população. Se o crescimento econômico vier acompanhado de uma piora na desigualdade da distribuição de renda, então é possível que a totalidade dos frutos do progresso econômico sejam apropriados por uma parcela ínfima da população. Esse não é o tipo de sociedade na qual se possa gerar harmonia entre as classes sociais, pelo contrário, haverá uma insatisfação crescente entre grandes camadas da população, a qual verá “os ricos cada vez mais ricos” e nenhuma possibilidade de progresso econômico para si mesma ou para seus filhos.
Claramente essa não é uma situação politicamente sustentável no médio/longo-prazo. Três cenários são possíveis. O primeiro é a emergência de um novo consenso social-democrata, no qual os ricos aceitam “dar os anéis para não perder os dedos”, ou seja, os “ricos” exercem seu “auto-interesse esclarecido” e aceitam o novo consenso. Foi isso o que ocorreu no pós Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 1970 em todos os países desenvolvidos. No novo consenso, os mercados financeiros voltam a ser pesadamente regulados, a tributação volta a ser progressiva e o estado do bem-estar social é reconstruído. Este é o único caminho compatível com a paz e a justiça.
Um segundo cenário, que de certa forma está ocorrendo hoje, é a emergência de movimentos populistas de direita. A característica central desses movimentos é usar aquilo que Paul Krugman chamou de “armas de distração de massa” para desviar o foco de atenção do público dos problemas econômicos reais para “bodes expiatórios” ou “soluções paliativas”. Essas “armas de distração de massa” podem ser de diversos tipos como, por exemplo, a discussão sobre o “direito” de todos os cidadãos de portar armas, a discussão sobre a necessidade de reduzir o tamanho do Estado para diminuir a influência dos burocratas e dos políticos sobre a economia, a discussão sobre a necessidade de reduzir os impostos sobre todos (mas de forma acentuada sobre os mais ricos), ou ainda a discussão sobre a existência de suposta “ideologia gayzista” que estaria ameaçando os alicerces morais da sociedade, etc. Dessa forma, tais movimentos adotam a velha tática Romana de “dividir para reinar”: estimula-se o conflito interno entre os membros do 99% para que eles não se unam e assim acabem com os privilégios dos 1% mais ricos. Não é a toa que tais movimentos são fartamente financiados por indivíduos que compõe o 1% ….
O terceiro cenário é o renascimento dos movimentos revolucionários de caráter socialista, a exemplo do que ocorreu em meados do século XIX. O fim da URSS e a queda do muro de Berlim deixaram a opção socialista desacreditada entre a maioria da opinião publica nos países desenvolvidos. Contudo, a medida que as pessoas que viveram a experiência do “socialismo real” do século XX forem morrendo, a memória social da tragédia que essas experiências representaram irá sendo lentamente apagada. Dessa forma, não é impensável que, no prazo de 20 ou 30 anos nos deparemos novamente com o “espectro do comunismo” (Engels e Marx, 1848) rondando novamente a Europa e os Estados Unidos.
Espero e torço para que o grupo dos 1% perceba que é do seu “auto interesse esclarecido” reverter esse quadro de coisas.
Referências
Engels, F; Marx, K. (1848). “O Manifesto do Partido Comunista”. Vozes: Rio de Janeiro.
Piketty, T. (2014). “O Capital no ´Seculo XXI”. Intrínseca: Rio de Janeiro
Stiglitz, J. (2016). “O Grande Abismo: Sociedades desiguais e o que podemos fazer sobre isso”. Alta Books: São Paulo