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A crise da economia brasileira, Debate Macroeconômico, Desequilíbrio externo, José Luis Oreiro, Rigidez estrutural do balanço de pagamentos
Está claro que a situação fiscal no Brasil está longe de ser confortável, mas a dívida pública brasileira é similar à de países como Índia e China

José Luis Oreiro*
O período que sucedeu a vitória de Luis Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições presidenciais foi marcado pelas controvérsias sobre o “estouro do teto de gastos” previsto pela “PEC da Transição”. Na versão aprovada pelo Senado Federal no dia 07 de dezembro de 2022, ficou estabelecido que o governo federal poderá gastar até R$ 145 bilhões “fora do Teto” para executar políticas como a manutenção do Bolsa Família em R$ 600,00 com acréscimo de R$ 150,00 por filho, recompor o orçamento do programa farmácia popular, entre outras políticas sociais e assistenciais. Muitos economistas, a maioria deles ligada direta ou indiretamente ao mercado financeiro, se opuseram publicamente a essa medida alegando que a (sic) “farra fiscal” iria produzir uma fuga de capitais do país, a interrupção do financiamento da dívida pública por parte do mercado, uma maxidesvalorização cambial e o recrudescimento da inflação ao longo do ano de 2023, o que levaria a uma queda do salário real e a um agravamento da situação de fome e pobreza no país.
Não é a primeira vez que esse tipo de cenário apocalíptico é desenhado. Em 2020, durante a pandemia do covid-19, não foram poucos os que disseram que o Brasil caminhava para um “abismo fiscal” devido aos gastos excessivos com o auxílio emergencial, os quais levariam a relação dívida pública/PIB pra perto de 100% em 2022 e que, devido a algum mecanismo mágico, a economia brasileira entraria numa espécie de “buraco negro” com consequências catastróficas para a economia do país. Como sabemos nada disso ocorreu. Graças em larga medida ao auxílio emergencial, a economia brasileira teve uma contração modesta em 2020 (de apenas 3,3%) na comparação com os Estados Unidos e os países da União Europeia. Além disso, a relação dívida pública/PIB no Brasil deve fechar em torno de 78% em 2022, muito abaixo do cenário desenhado pelos profetas do apocalipse.
Está claro que a situação fiscal no Brasil está longe de ser confortável, mas a dívida pública brasileira (% do PIB) é similar a de países como Índia e China. Se o próximo governo for capaz de desenhar uma nova regra fiscal para por no lugar do teto de gastos, que seja capaz de conciliar o espaço fiscal necessário para o aumento do investimento público em infraestrutura e dos gastos assistenciais com a redução da dívida pública como proporção do PIB no médio prazo, para um patamar em torno de 65% do PIB, não há razão para acreditar que o crescimento econômico possa ser restrito pelo lado fiscal.
Uma ausência gritante, para não dizer escandalosa, no debate econômico brasileiro é o desequilíbrio externo. Conforme verificamos na figura 1 abaixo, a partir de maio de 2008, no acumulado em 12 meses, o Brasil começou a apresentar déficit crescente na conta de transações correntes do balanço de pagamentos, o qual atingiu a marca de 4,25% do PIB em outubro de 2015. Esse desequilíbrio externo resultou numa desvalorização da taxa real efetiva de câmbio de 17,12% entre janeiro e dezembro de 2015, contribuindo de forma decisiva para a aceleração da inflação nesse ano e para a elevação da taxa básica de juros por parte do Banco Central, amplificando a recessão que havia começado no segundo semestre de 2014.

Fonte: Ipeadata. Elaboração do autor.
Graças a forte desvalorização cambial e a queda de mais de 8% do PIB entre o segundo semestre de 2014 e o ultimo trimestre de 2016, o déficit em conta corrente se reduziu para 0,894% do PIB em março de 2018. Embora déficits em conta corrente inferiores a 1% do PIB não sejam preocupantes do ponto de vista do financiamento externo, chama atenção que, após a maior recessão dos últimos 40 anos e de uma forte desvalorização da taxa de câmbio, a economia brasileira se mostrou incapaz de voltar a gerar superávits em conta corrente como no período entre junho de 2003 e dezembro de 2007. Mais grave ainda é o fato de que uma vez passados os efeitos da grande recessão brasileira (2014-2016), o déficit em conta corrente como proporção do PIB no acumulado em 12 meses volta a se elevar atingindo 3,52% do PIB em junho de 2020, já no período da pandemia do covid-19.
Entre fevereiro de 2020 e maio de 2021 a taxa real efetiva de câmbio se desvaloriza em 30,75% e a economia se encontra em recessão. Apesar da enorme mudança de preços relativos e da queda do nível de atividade econômica, o déficit em conta corrente no acumulado em 12 meses se reduz para apenas 1,90% em agosto de 2021, apresentando desde então nova tendência a elevação.
Os dados apresentados parecem apontar para o retorno da rigidez estrutural do balanço de pagamentos, situação na qual a desvalorização cambial se mostra incapaz de resolver o desequilíbrio externo devido ao perfil da pauta de exportações. A desindustrialização precoce da economia brasileira resultou numa reprimarização da pauta de exportações, reduzindo assim a sensibilidade das exportações ao câmbio. Nesse contexto, o crescimento do PIB a um ritmo mais robusto será inevitavelmente estrangulado pelo aumento explosivo do déficit em conta corrente, que termina sempre desencadeando uma crise cambial, com maxidesvalorização do câmbio, elevação da inflação e da taxa de juros, abortando assim a retomada do crescimento.
* Professor do Departamento de Economia da UnB. E-mail: joreiro@unb.br.