Uma das obras de misericórdia segundo a Santa Igreja Católica Apostólica Romana é levar a luz do conhecimento aos que jazem na trevas da ignorância. Semana passada muitos amigos me enviaram posts do twitter – que se tornou nos tempos recentes a referência para o (sic) debate científico – de economistas pop (essa expressão não é minha, mas do prêmio Nobel de Economia Paul Krugman) – a qual designa economistas que não tem estofo acadêmico, mas que são venerados pelas massas que não dispõem de discernimento crítico para separar o joio do trigo – acusando o novo-desenvolvimentismo (doravante ND), escola de pensamento da qual eu me orgulho de ser um dos fundadores (Ver Bresser-Pereira, Oreiro e Marconi, 2015), de deliberadamente, por pura maldade, defender políticas que tem por objetivo empobrecer os trabalhadores. Essa afirmação é de uma brutal desonestidade intelectual somada a pura e simples ignorância de quem nunca se deu ao trabalho de ler, ao menos, o livro texto base do novo-desenvolvimentismo. Com efeito, Bresser-Pereira, Oreiro e Marconi (2015, p. 14) afirmam que “Economic development is a process of capital accumulation with the incorporation ot technical progress, resulting in an increase in productivity, wages, and the population´s standar of living“. Afirmar que o ND defende o empobrecimento permanente da classe trabalhadora é uma fake news digna do Bolsonarismo.
Segundo os economistas pop os economistas do ND querem empobrecer os trabalhadores porque defendem uma desvalorização do câmbio a qual, se bem sucedida, e supondo a taxa de mark-up constante (ressalva que eles nunca se lembram de fazer), irá resultar numa inequívoca redução do salário real [ uma desvalorização do câmbio pode ser feita sem redução do salário real se os empresários estiverem dispostos a reduzir a taxa de mark-up. A esse respeito ver Oreiro, 2018, capítulo 8] Como algum filósofo já disse uma vez, toda mentira bem contada tem sempre uma aparência de verdade. De fato, os economistas ND nunca esconderam do público de que a eliminação da sobrevalorização cambial, cujos efeitos são nocivos sobre a estrutura de produção e emprego de uma economia de renda média, como é o caso do Brasil, no médio e longo-prazo, implica numa redução temporária do salário real. Eu mesmo afirmei isso com todas as letras no post https://jlcoreiro.wordpress.com/2017/04/07/sobre-a-relacao-entre-cambio-real-e-salarios/. O que os economistas pop se (sic) “esquecem” de perguntar é sobre (i) as causas da sobrevalorização cambial e (ii) o que irá ocorrer com os salários e os empregos dos trabalhadores se a sobrevalorização cambial for mantida indefinidamente. Como diria o velho Nelson Rodrigues, o diabo está nos detalhes. E são os detalhes que os economistas pop por pura desonestidade intelectual ou por pura ignorância ou por uma combinação convexa entre as duas opções anteriores não mencionam em suas narrativas rasas em postagens no twitter.
Vamos começar do princípio. O que é sobrevalorização cambial para o ND? Trata-se de uma situação na qual a taxa real de câmbio se encontra abaixo (apreciada) com relação ao nível de equilíbrio industrial. Na definição de Oreiro (2020), a taxa de câmbio de equilíbrio industrial é aquele nível da taxa real de câmbio que faz com que a participação da indústria de transformação no PIB permaneça constante ao longo do tempo, ou seja, aquela que impede a desindustrialização prematura da economia, tal como tem ocorrido no Brasil desde 2005 (Ver Figura abaixo).

A sobrevalorização cambial DESTROI os empregos de boa qualidade e de altos salários, obrigando a força de trabalho a buscar alternativas de emprego no setor de serviços de baixa produtividade e/ou no setor de subsistência urbano, processo que no Brasil ficou conhecido como “uberização” da economia. Trata-se de uma doença que destrói o tecido econômico do país, condenando milhões de trabalhadores a uma existência material primitiva ou tornando-os dependentes eternamente de programas de assistência social para poder escapar da miséria absoluta. Isso não é desenvolvimento econômico. Como salientado por Reinert (2016), trata-se de puro e simples neo-colonialismo assistencialista.
A sobrevalorização cambial tem duas fontes. A primeira é a Doença Holandesa ou Estrutura Produtiva Desequilibrada nos termos do economista Argentino Marcelo Diamand (1972). Em economias ricas em recursos naturais, como é o caso do Brasil, a produção de bens primários é realizada a custos unitários de produção mais baixos do que a produção de bens manufaturados. Isso se deve, por um lado, a disponibilidade de insumos para as atividades primárias a custos mais baixos do que os prevalecentes em outros países menos afortunados em termos de recursos naturais e, por outro, ao estágio de desenvolvimento ainda incompleto das indústrias manufatureiras nesses países. Dessa forma, se prevalecer uma única taxa de câmbio para os produtos primários e para os produtos manufaturados, a taxa de lucro obtida pelos produtores de bens primários será muito maior do que a obtida pelos produtores de bens manufaturados. Isso, por si só, já levaria a uma migração dos capitais e demais recursos produtivos da indústria de transformação para a produção de bens primários, resultando em desindustrialização prematura (É por isso que os economistas do ND defendem a implementação de um imposto de exportação sobre produtos primários para a redução dos lucros extranormais obtidos nas atividades de produção e exportação de bens primários). Mas no estágio atual de financeirização das relações econômicas, as taxas de câmbio são muito influenciadas pelas convenções dos agentes do mercado financeiro sobre os determinantes do “valor” das moedas. A convenção prevalecente atualmente é que as moedas dos países exportadores de commodities – ou seja a sua taxa de câmbio – depende dos preços das commodities que eles exportam. Dessa forma, períodos de boom de commodities como o que o Brasil experimentou entre 2005 e 2013 (Oreiro e D´Agostini 2017) geram um aumento do valor da moeda atrelada ao valor das commodities exportadas, ou seja, uma valorização da taxa de câmbio. Essa apreciação cambial, resultado da operação livre das forças de mercado, tem uma externalidade negativa sobre a indústria de transformação, fazendo com que a mesma tenha uma redução na sua competitividade-preço e, dessa forma, veja encolher o seu market-share tanto nas exportações mundiais de manufaturados como também, pasmem, na participação das vendas para o mercado interno!
A segunda fonte da sobrevalorização cambial é a adoção do modelo de crescimento com poupança externa inspirado nos princípios do Consenso de Washington. De acordo com o referido conselho, os países da América Latina precisam atrair “poupança externa” para financiar o seu desenvolvimento, o que significa necessariamente incorrer em déficits em conta corrente do balanço de pagamentos. Em outras palavras, o Consenso de Washington defende que os países da América Latina mantenham a absorção doméstica acima da produção interna de bens e serviços, financiando esse hiato com empréstimos e capitais externos. Na visão do consenso de Washington, a poupança é que determina o investimento e, além disso, a poupança externa e a poupança doméstica são complementares ao invés de substitutas. Para atrair “poupança externa” é, contudo, necessário manter a taxa de juros doméstica acima do nível internacional (ajustado pelo prêmio de risco país) para gerar um ganho de arbitragem suficientemente alto para os rentistas, ops, quero dizer, investidores internacionais aplicarem seus capitais benevolentemente no desenvolvimento dos países latino-americanos.
A fórmula do Consenso de Washington, que pelo visto é ardorosamente defendida pelos economistas pop, é elevar a taxa doméstica da juros para gerar uma taxa de câmbio apreciada e, dessa forma, captar a poupança externa necessária ao desenvolvimento dos países da América Latina. Mas não só isso. A sobrevalorização cambial, quero dizer, a apreciação cambial produziria como efeito colateral o aumento dos salários reais dos trabalhadores. Temos assim a fórmula para o paraíso na terra: os leões (os rentistas) poderiam conviver em paz e harmonia com os cordeiros (os trabalhadores). Isso sem que seja necessária uma revolução socialista (segundo a visão Marxista) ou a segunda vinda de Jesus Cristo a Terra (segundo a visão Cristã).
Cristãos e Marxistas, até o presente momento, não foram capazes de produzir o paraíso na Terra: os primeiros porque Jesus Cristo ainda não voltou; e os segundos porque seu experimento de economias centralmente planificadas fracassou rotundamente em 1989 com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS. Será que a proposta dos economistas pop, baseada no Consenso de Washington, poderia ter uma sorte melhor?
A história do Brasil e da América Latina nos últimos 40 anos diz um inequívoco não a essa pergunta. Desde a implantação do Plano Real em 1994 pelo então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, o Brasil tem convivido com longos períodos de taxa de câmbio sobrevalorizada e taxa de juros acima do patamar internacional, pontuados por breves momentos de câmbio competitivo (1999-2004) e juros baixos (2019-2020). O resultado tem sido desindustrialização prematura, redução da participação do emprego industrial no emprego total, aumento da informalidade e crises cambiais (1995, 1998, 2002, 2015 e 2020).
É importante ressaltar que é impossível manter inalterado o nível de salário real se a taxa de câmbio estiver sobrevalorizada: a desindustrialização prematura e/ou a ocorrência de uma crise cambial irá mudar a composição do emprego na direção de empregos com salários mais baixos (efeito composição) e/ou produzir uma rápida e súbita desvalorização cambial (como as ocorridas em 1999, 2002, 2015 e 2020) a qual irá resultar em aceleração da inflação e, por conseguinte, redução do salário real.
Manter a taxa de câmbio num patamar competitivo é condição necessária, mas não suficiente para a reindustrialização e a retomada do crescimento econômico. O efeito de histerese sobre o investimento privado de anos de recessão na economia brasileira levou a um aumento do hiato tecnológico da economia brasileira, aumentando o valor da taxa de câmbio de equilíbrio industrial a tal ponto que a correção da sobrevalorização cambial unicamente por intermédio da desvalorização da taxa de câmbio pode ser politica e economicamente inviável (Oreiro, D´Agostini e Gala, 2020). Em conjunto com uma política cambial esclarecida o Brasil precisa de uma política industrial e de ciência e tecnologia que reduza o tamanho do hiato tecnológico, isto é, que seja capaz de aumentar a competitividade extra preço da indústria brasileira de transformação, algo que as sucessivas políticas industriais adotadas durante os governos do PT (2003-2016) não foram capazes de fazer pelas mais diversas razões. A combinação de câmbio competitivo e de políticas industriais e de ciência e tecnologia bem formuladas serão capazes de no prazo de alguns anos – prazo dilatado em função da destruição feita pelo governo Bolsonaro – induzir a uma transformação estrutural na economia brasileira, aumento assim não apenas a quantidade mas também a qualidade dos empregos gerados com a retomada do crescimento econômico. Essa é a única forma de se produzir um aumento sustentável dos salários reais. Todo o resto não passa de pura e simples demagogia.
Em tempo, nós economistas ND não desejamos apenas paz para os trabalhadores, desejamos principalmemente que eles prosperem em empregos de boa qualidade e não dependam do assistencialismo neo-colonialista defendido pelos economistas pop que desconsideram o fato elementar de que o trabalho é a fonte primária de dignidade do ser humano.
Em suma, os economistas pop construíram em suas (sic) publicações no Twitter um espantalho do ND, que não corresponde nem as ideias dos economistas dessa escola de pensamento, muito menos as suas origens sociais. No meu caso em particular, sou filho de camponeses pobres e semianalfabetos emigrados da Europa em meados dos anos 1950, e tenho muito orgulho disso. Não tenho nenhuma razão para defender os interesses dos capitalistas, muito menos dos rentistas. Não faltaram ocasiões em que tentaram me aliciar. Mas eu continuo onde sempre estive, coerente com minhas ideais, embora isso já tenha me custado, mais de uma vez, cargos no governo. E para quem interessar possa, estou muito velho para mudar de atitude a respeito de “cargos e comissões”. Se essas ideias são corretas e apropriadas para o Brasil ou não, o julgamento cabe a Deus e a História.
Referências
Bresser-Pereira, L.C; Oreiro, J.L; Marconi, N. (2015). Developmental Macroeconomics: New Developmentalism as a growth strategy. Routledge: Londres.
Diamand, M. (1972). “La estructura productiva desequilibrada Argentina y el tipo de cambio”. Desarrollo Económico 12(45), pp. 1-24.
Oreiro, J.L. (2020). New Developmentalism: beyond competitive exchange rate. Brazilian Journal of Political Economy, 40(2), pp. 238-242. https://doi.org/10.1590/0101-31572020-3138
Oreiro, J.L. (2018). Macrodinâmica Pós-Keynesiana: Crescimento e Distribuição de Renda. Alta Books: Rio de Janeiro.
Oreiro J.L., D’Agostini L.L. and Gala P. (2020). “Deindustrialization, economic complexity and exchange rate overvaluation: the case of Brazil (1998-2017)”, PSL Quarterly Review, 73 (295), pp. 313- 341. https://doi.org/10.13133/2037-3643_73.295_3
Oreiro, J.L and D’Agostini, L. (2017). “Macroeconomic policy regimes, real exchange rate over-valuation and performance of Brazilian economy (2003-2015)”. Journal of Post Keynesian Economics 40, pp. 27-42. https://doi.org/10.1080/01603477.2016.1273070
Reinert, E. (2016). Como os países ricos ficaram ricos … e porque os países pobres continuam pobres. Contraponto: Rio de Janeiro.