Por Pedro Cafardo

É difícil neste momento desesperador fugir do tema da pandemia. Mas alguém precisa pensar em outro paciente moribundo no país, a indústria, atingida também por um poderoso vírus que vem destruindo sua capacidade de produção há décadas. Agora, a doença se agravou. A Ford, há um século no país, vai embora. A Mercedes suspende a produção de sua fábrica no Brasil. A Sony sai correndo de Manaus. É o avanço da desindustrialização. Alguns analistas dizem se tratar de um processo mundial de transição da economia industrial para a de serviços. O processo existe, mas, no caso brasileiro, é acelerado e se dá antes de o país atingir a maturidade no setor.
Há pelo menos três décadas a indústria brasileira agoniza
A fatia brasileira na indústria mundial, que chegou a 2,8% em 2005, recuou para 1,8% agora. E a indústria tem hoje participação no PIB nacional de 11% – tinha 17,8% em 2004 e 35% em meados dos anos 1980. Ou seja, há pelo menos três décadas a indústria brasileira agoniza, sem respiradores nem UTIs. Esses números e outros abaixo mostram um processo de desindustrialização evidente. Embora a tragédia da pandemia dificulte raciocínios sobre futuro, a coluna colheu opiniões de dois grandes economistas brasileiros não submissos ao mercado financeiro e estudiosos da indústria. A pergunta foi: como reverter esse processo?
Para trás
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor da Unicamp e das Faculdades de Campinas, observa que a desindustrialização teve início na “década perdida” (1980), quando a crise da dívida e a hiperinflação impediram o setor de incorporar novas tecnologias da Terceira Revolução Industrial. A estabilização dos anos 1990 livrou a economia da hiperinflação, mas foi feita com a “combinação perversa de câmbio valorizado e juros estratosféricos”. As consequências foram graves para a indústria, que outra vez deixou de acompanhar transformações globais em várias áreas. Nos anos 2000, com a expansão sino-americana e a demanda de commodities, a indústria brasileira “pegou uma beirada na festança global”, segundo Belluzzo. O superávit comercial da indústria subiu de US$ 29,8 bilhões em 2006 para US$ 48,7 bilhões em 2011. Em 2014, porém, esse resultado já havia involuído para US$ 63 bilhões de déficit. Em 2020, o resultado negativo foi de US$ 35,3 bilhões.
Agora um dado entristecedor, levantado e checado pelo economista Robinson Moraes, do Valor Data (ver gráfico). No fim dos anos 1970, produção e exportação de manufaturados brasileiros eram próximas ou superiores às de concorrentes asiáticos. Em 1980, o Brasil exportou US$ 9,028 bilhões em manufaturados, mais que a China, que vendeu US$ 8,712 bilhões. Hoje, a distância entre os dois países é estratosférica. O Brasil exportou, em 2020, US$ 60,7 bilhões em manufaturados, e a China, US$ 2,47 trilhões.
Belluzzo observa que o Brasil perdeu a corrida para a China por mérito do “adversário”, mas também por fatores internos, como valorização cambial, “reprimarização” da pauta de exportação, bloqueios à diversificação da estrutura industrial e permanência de uma organização empresarial defensiva e frágil. O grave da situação atual, segundo ele, é que essa fragilização industrial ocorre em um momento de intenso movimento de fusões e aquisições das cadeias produtivas globais. Por isso, a política para a reindustrialização não pode hoje reproduzir as orientações do período dito nacional-desenvolvimentista e, muito menos, promover abertura comercial sem uma política industrial e financeira ajustada aos tempos atuais. A literatura sobre processos de industrialização, diz Belluzzo, mostra a importância da ação do Estado no financiamento, na educação, na criação de sistemas de inovação e nas políticas comerciais. Essa foi a experiência de Alemanha, Japão, Coreia do Sul, China e EUA.
A manutenção do câmbio real competitivo é condição necessária, mas não suficiente. Precisa ser complementada por ações governamentais, como a escolha das cadeias prioritárias e a adoção de parcerias público-privadas. O salto tecnológico e de escala da indústria brasileira não vai ocorrer sem políticas que estimulem o mercado de capitais. A experiência histórica demonstra que isso exige a constituição de bancos universais de grande porte, regulados e supervisionados, capazes de desenvolver instrumentos financeiros para crédito de longo prazo. Os sistemas financeiros que ajudaram a erguer os países asiáticos eram relativamente “primitivos” e especializados em dar crédito subsidiado e/ou barato a empresas e setores “escolhidos” como prioritários pelas políticas industriais. O circuito virtuoso ia do financiamento para o investimento, do investimento para a produtividade, da produtividade para exportações, daí para os lucros e dos lucros para a liquidação da dívida.
Políticas equivocadas
@José Luis Oreiro, professor da UnB, considera que a reindustrialização exige o abandono de algumas políticas equivocadas [dogmas, acrescenta o articulista], como o desmonte do BNDES.
A questão da competitividade já está hoje mais ou menos resolvida com a desvalorização do real, mas, segundo Oreiro, há dois desafios. O primeiro é a recuperação da demanda, porque a renda caiu para níveis de 2013 e existe enorme capacidade ociosa. O segundo, a retomada de investimentos em máquinas e equipamentos, porque a indústria deixou de investir nesses anos de crise e ficou muito defasada tecnologicamente. É necessário e honesto lembrar também que a indústria sofreu um baque com a Operação Lava-Jato. O combate à corrupção era necessário, mas as punições deveriam atingir mais as pessoas e menos as empresas. Em 1945, após a rendição japonesa, o general Douglas MacArthur chamou o imperador Hirohito para conversar no QG americano. E o imperador, envergonhado, fez apenas um pedido: “General, peço que qualquer punição seja a mim, não ao Japão”.
Pedro Cafardo é jornalista da equipe que criou o Valor Econômico e escreve quinzenalmente às terças-feirasE-mail: pedro.cafardo@valor.com.br
A perspectiva da necessidade de ‘câmbio real competitivo’ vem muito do fato que nunca existiu uma classe industrial no Brasil( talvez no império, mas nao na segunda metade dos anos 1900), mas sim uma indústria que cresceu ao redor do ”rentier, do investidor sem função” (nos termos do cap24 da teoria geral), oriundo do setor cafeeiro.
Isso fica obvio na medida em que a industrial local nao conseguiu ganhar o brasileiro, e com isso foi incapaz de resistir a concorrência que veio de fora.
No mais, pelo perfil do Brasil hoje, buscar a industrialização nesses moldes é fechar os olhos para a realidade brasileira.
Nao dá pra esperar que a sociedade abra mão dos privilégios da renda média pra buscar sair do zero.
CurtirCurtir
Excelente reflexão do panorama da economia brasileira.
CurtirCurtir
Republicou isso em Iso Sendacz – Brasile comentado:
Não há setor da economia que substitua a indústria como vanguarda do desenvolvimento econômico, pois é na transformação na Natureza de forma intensiva que a disponibilidade de bens – e de máquinas produtoras de bens – avança à abundância.
Claro que o agronegócio é importante, vital às pessoas do mundo inteiro. Mas é na indústria que o capital dá mais retorno, do contrário o controle da tecnologia não se concentraria ao ponto de o Brasil, como aponta Cafardo na matéria, reprimarizar-se, voltar ao estágio de um século atrás.
CurtirCurtir