José Luis Oreiro**
A sociedade Brasileira enfrenta uma profunda crise econômica, política, social e civilizacional desde 2013. Durante os 10 anos anteriores, a combinação entre um ambiente externo extremamente favorável, na forma de rápido crescimento da economia mundial e elevação dos preços das commodities, do aumento do poder de compra das classes mais desfavorecidas devido ao aumento real do salário mínimo e dos programas de assistência social e do aumento do crédito bancário como proporção do PIB permitiu uma aceleração do crescimento econômico (Ver Figura 1), cuja média móvel decenal alcança o pico de 4,04% a.a precisamente em 2013, uma aumento significativo com respeito das duas décadas anteriores. A partir de 2013, contudo, o ritmo de crescimento da economia brasileira (medido pela média móvel decenal) sofre um processo de desaceleração contínua, alcançando a marca de 1,26% a.a. em 2018, o nível mais baixo para a série iniciada em 1930. Simultaneamente ao processo de forte desaceleração do ritmo de crescimento econômico, a sociedade brasileira passou por uma crise política que culminou no processo de impeachment da Presidente Dilma Rouseff em 2015. Muitos esperavam que, uma vez afastada a Presidente da República, seria possível restabelecer condições mínimas de governabilidade e, dessa forma, o crescimento econômico poderia ser restabelecido. Essas expectativas foram frustradas. Embora, o governo do Presidente Michel Temer tenha se mostrado capaz de sobreviver as tentativas de investigação de corrupção por parte da Procuradoria Geral da República, e iniciado uma “agenda de reformas” baseadas no documento “Ponte para o Futuro” (elaborado por um grupo de economistas liberais liderados por Samuel Pessoa e Marcos Lisboa), de viés claramente liberal; a retomada robusta do crescimento econômico, cantada em prosa e verso pelos economistas liberais, como o resultado da adoção de uma agenda de reformas, simplesmente não aconteceu.

Fonte: IPEADATA. Elaboração do autor.
Em 2016 foi aprovada a Emenda Constitucional 95 estabelecendo o “congelamento” dos gastos primários da União por um período de 20 anos. Argumentava-se que a “grande recessão brasileira” – ocorrida entre o segundo semestre de 2014 e o último trimestre de 2016, na qual ocorreu uma queda de 8,3% do PIB – fora o resultado de um desequilíbrio fiscal estrutural decorrente do crescimento da despesa primária da União a um ritmo sistematicamente superior ao PIB desde o início dos anos 1990. Embora os advogados dessa tese nunca tenham explicitado o porquê do desequilíbrio fiscal estrutural ter levado mais de 20 anos para ter produzido a maior contração do nível de atividade econômica desde 1980, e muito menos os mecanismos pelos quais uma expansão fiscal estrutural ter resultado numa contração do PIB – o que exigiria que o multiplicador dos gastos do governo tivesse se tornado subitamente negativo a partir do segundo semestre de 2014, evento jamais registrado pela literatura internacional relevante sobre o tema – a mesma foi largamente adotada pela grande mídia e por boa parte dos formadores de opinião como a explicação (sic) verdadeira para a grande recessão brasileira.
Nesse contexto, a resolução da crise e a retomada do crescimento exigiam o mesmo tipo de medida, a saber: a redução dos gastos primários como proporção do PIB por intermédio de uma série de “reformas estruturais” que levariam a redução do gasto governamental como proporção do PIB; a qual deveria resultar “automaticamente”, pelas forças dos mecanismos de mercado, num aumento do investimento privado e do ritmo de crescimento econômico. Implícita nessa argumentação está a ideia de que o gasto público “expulsa” (“crowd-out”) o investimento privado, uma reedição da velha “visão do Tesouro” (“Treasury View”) que o economista Britânico John Maynard Keynes havia tão brilhantemente refutado na sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, publicada em 1936, desencadeando uma revolução no pensamento econômico predominante até então. Dessa forma, a tese do desequilíbrio fiscal estrutural representava, do ponto de vista da história do pensamento econômico, um retrocesso ao mundo do liberalismo clássico, o qual foi a causa última da grande depressão de 1929 e da ascensão do nazi-fascismo; ou seja, uma espécie de “terraplanismo econômico”.
Para que o “Teto de Gastos” pudesse ser crível, argumentam seus defensores, seriam necessárias reformas adicionais para reduzir o ritmo de crescimento das assim chamadas despesas obrigatórias, ou seja, aquelas despesas que o poder executivo é obrigado a realizar sob pena de cometer crime de responsabilidade ou até mesmo crime comum previsto no código penal. Consoante com esse discurso, inicia-se a discussão de uma “Reforma da Previdência Social” em 2017 cujo foco era exclusivamente a redução dos benefícios previdenciários, seja por intermédio da redução do número médio de anos que o(a) beneficiado(a) poderia disfrutar da aposentadoria, o que exigia a adoção de uma idade mínima para acessar o benefício; seja por uma mudança na forma de cálculo do benefício previdenciário que levasse a uma redução da chamada taxa de reposição, ou seja, da relação entre o benefício previdenciário e o último salário recebido antes da aposentadoria. Em nenhum momento se debateu a possibilidade de reduzir o déficit da previdência social[1]por intermédio de medidas que levassem a um aumento da receita previdenciária. Com efeito, uma das características mais marcantes do mercado de trabalho Brasileiro é a elevada informalidade da força de trabalho, com aproximadamente 50% da força de trabalho exercendo trabalhos informais ou por conta própria. A redução da elevada informalidade no mercado de trabalho brasileiro poderia produzir uma elevação significativa da receita previdenciária, haja vista que a contribuição previdenciária é feita, na sua quase totalidade, por empresas e trabalhadores do setor formal da economia. Além disso, o aumento da formalização do mercado de trabalho também produziria, como efeito indireto, um aumento da produtividade do trabalho, pois os melhores postos de trabalho estão no mercado formal.
Está claro, portanto, que a reforma da previdência social deveria estar combinada com uma reforma trabalhista que permitisse o aumento da formalização do mercado de trabalho. Uma reforma trabalhista foi, de fato, realizada em 2017, mas ao invés de incentivar a formalização dos trabalhadores; ela apenas “flexibilizou” alguns itens da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), reduzindo os custos para a demissão dos trabalhadores, desincentivando a judicialização de disputas entre empregado e empregador e eliminando a contribuição sindical compulsória. Argumentava-se, para a defesa dessa versão liberal da Reforma Trabalhista, que os custos impostos pela CLT reduziam a demanda por mão de obra, o que contribuía para manter o desemprego elevado, e desestimulavam a contratação de trabalhadores no mercado formal de trabalho. Os defensores da reforma trabalhista afirmavam que ela permitiria a criação de milhões de empregos nos anos subsequentes. A realidade, mais uma vez, não confirmou as expectativas dos economistas liberais. No final de 2019, antes portanto da pandemia do novo coronavírus, o Brasil ainda possuía um total de mais de 12 milhões de desempregados, um número apenas modestamente mais baixo do que o atingido no auge da crise econômica em 2016, quando um pouco mais de 14 milhões de brasileiros estavam sem emprego.
A reforma da previdência foi aprovada apenas no segundo semestre de 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro. O ministro da economia e outros analistas econômicos prometiam que, com a aprovação da reforma da previdência[2], a economia voltaria imediatamente a crescer, com alguns prevendo um crescimento de 4% a.a.. Não foi o que aconteceu. No segundo semestre de 2019 era evidente para todo mundo fora da bolha da Faria Lima e do Ministério da Economia que a economia brasileira estava perdendo tração com respeito ao biênio 2017-2018, durante o governo de Michel Temer. Isso ficou cabalmente demonstrado quando o IBGE divulgou, no início de 2020, os dados do PIB de 2019. A economia brasileira havia crescido apenas 1,1% em 2019, contra uma média de 1,3% no biênio 2017-2018.
No final de 2019 estava claro, portanto, que a agenda de Reformas proposta em 2015 pelos economistas liberais não estava funcionando. A explicação dada para o evidente fracasso dessa agenda era que mais reformas seriam necessárias para (sic) colocar o país no rumo do crescimento, numa clara adoção do famoso princípio da contra indução de Mário Henrique Simonsen, o qual consiste em repetir uma experiência que não deu certo inúmeras vezes até que ela finalmente funcione! De forma coerente com esse princípio, o Ministério da Economia apresentou em novembro de 2019 um pacote com três propostas de emendas constitucionais que constituiriam o assim chamado Plano Mais Brasil a saber: as PEC 186 (dos fundos públicos), a 187 (Emergencial) e a 188 (Pacto Federativo). A ideia subjacente a essas PECs era continuar o processo de redução da despesa obrigatória da União e demais entes federativos com a redução da jornada de trabalho e dos vencimentos dos servidores públicos; bem como reduzir a dívida pública por intermédio do uso (sic) dos recursos dos fundos infraconstitucionais retidos na Conta Única do Tesouro. A efetividade das PECs 186 e 187 para atingir os objetivos que elas mesmas se propunham foi analisada, entre outros, por Oreiro e Martins da Silva (2020)[3]. Os autores demonstram de forma cabal que as medidas do Plano Mais Brasil não só não irão resultar numa redução do endividamento público (fato esse confirmado pelo diretor executivo da Instituição Fiscal Independente em audiência pública da CCJ do Senado Federal no início de 2020), como ainda podem levar a uma destruição da institucionalidade de implementação das políticas públicas no Brasil. Convido o(a) leitor(a) interessado(a) a consultar essa referência para maiores esclarecimentos.
Tudo o que disse até o presente momento aponta para a conclusão inescapável de que a agenda de reformas adotada a partir do impeachment da Presidente Dilma Rouseff não se mostrou capaz de levar a uma retomada consistente e auto sustentada do crescimento econômico Brasileiro. Isso não quer dizer, contudo, que não seja necessária a adoção de um amplo conjunto de reformas estruturais para fazer com que o Brasil volte a crescer. O problema dos diagnósticos vigentes no Brasil de hoje é que esses diagnósticos se baseiam na tese implícita de que o Brasil deixou de crescer pelas (sic) políticas heterodoxas e desenvolvimentistas adotadas pelos governos do PT. Isso não é verdade. A simples inspeção visual da figura 1 mostra que (i) a grande desaceleração do crescimento econômico no Brasil ocorreu em meados dos anos 1980 e (ii) durante a maior parte dos anos nos quais o Brasil foi governado pelo PT (2003-2013) o Brasil conseguiu recuperar parte do crescimento perdido. Mas essa recuperação foi apenas parcial e, mais importante, foi de caráter temporário. A aceleração do crescimento durante a era Petista se mostrou apenas um sonho ocorrido numa noite de verão.
Dessa forma, uma análise mais cuidadosa dos motivos que levaram a redução do ímpeto de crescimento da economia brasileira precisa ser feita para que seja possível desenhar uma agenda adequada de reformas estruturais. É o que me disponho a fazer na segunda parte deste ensaio.
** Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador nível IB do CNPq, Membro Sênior da Post-Keynesian Economics Society e Líder do Grupo de Pesquisa “Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento” cadastrado no CNPq. E-mail: joreiro@unb.br. Página Pessoal: www.joseluisoreiro.com.br.
[1] Aqui cabe uma observação pertinente. O assim chamado Regime Geral de Previdência Social (RGPS) apresentou superávit até 2015. Desde então tem apresentado déficit em função da queda de arrecadação decorrente da crise econômica e do aumento do desemprego.
[2] Sugiro aos interessados que pesquisem os vídeos do economista Ricardo Amorim nas redes sociais, onde ele afirma que a reforma da previdência levaria o crescimento da economia brasileira a um patamar de 4% a.a.
[3] Ver OREIRO, J. L. C.; SILVA, K. M. . A estagnação brasileira e a agenda de Paulo Guedes em tempos de coronavírus. REVISTA BRASILEIRA DE PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO, v. 10, p. 26-49, 2020.
Republicou isso em Iso Sendacz – Brasile comentado:
Quando o Congresso Nacional atribui ao Banco Central do Brasil responsabilidade em “fomentar o pleno emprego”, se antevê a dificuldade de faze-lo se as reformas de Estado em andamento, que visam reduzir o seu papel na economia, não mudarem o sentido para ajudar no crescimento econômico.
As etapas trabalhista, previdenciária e do teto de gastos não propiciaram a prometida explosão do emprego, do consumo e do bem estar dos brasileiros, e no Congresso outras apontam também ao fundo do poço, como bem fundamenta Oreiro.
Só poderiam cumprir o desejado se o gasto privado substituísse o gasto público contido, uma impossibilidade prática já tratada por Fernando Nogueira da Costa.
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