No mesmo dia (12/04/2020) em que o Primeiro Ministro do Reino Unido, Boris Jonhson, deixa o hospital e declara que deve a sua vida ao Serviço Público de Saúde (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2020/04/12/interna_mundo,844019/covid-19-boris-jonhson-deixa-hospital-apos-uma-semana-internado.shtml?utm_source=onesignal&utm_medium=push); leio na Folha de São Paulo o artigo “A Macroeconomia da Pandemia” de autoria do físico Samuel Pessoa; no qual ele mais uma vez declara sua fé na necessidade de se reduzir os salários dos servidores públicos para diminuir o impacto fiscal da crise do Coronavirus. Como ficará claro no minha explicação a seguir, a conclusão de Pessoa não se deduz logicamente das hipóteses que ele mesmo utiliza em seu artigo; pelo contrário, os argumentos apontados por Samuel Pessoa mostram que o custo econômico do enfrentamento dos efeitos recessivos das medidas de Distanciamento Social (DS) é igual a zero.

Samuel considera uma economia composta por dois setores: O setor A que realiza atividades essenciais e o Setor B que realiza atividades não essenciais. Por simplificação assume-se que cada setor emprega metade dos trabalhadores, que toda a produção é realizada apenas com trabalho (não há capital) e, portanto, toda a renda gerada é constituída de salários. A folha de salários é igual em cada setor. Por fim, assume-se que cada trabalhador consome 50% de sua renda com produtos do setor essencial e 50% da sua renda com produtos produzidos no setor não essencial. A poupança do setor privado é igual a zero. Não está dito no texto, mas podemos inferir também que, inicialmente, o déficit do governo é igual a zero e, portanto, a dívida pública é também igual a zero. Consideremos, por fim, que o governo só pode financiar seus eventuais déficits por intermédio de venda de títulos públicos no mercado (para os trabalhadores de ambos os setores); ou seja, que o Banco Central não está autorizado a comprar títulos públicos.

Nesse contexto, ocorre um choque exógeno, a pandemia do coronavirus, que obriga o governo a adotar medidas de DS para os trabalhadores do setor não essencial. Imediatamente a produção do setor não essencial é zerada, o que implica na redução do consumo dos trabalhadores do setor essencial em 50%, devido ao choque de oferta no setor não essencial. Nesse contexto, se a renda dos trabalhadores não essenciais também for reduzida a zero, então eles não poderão comprar os bens produzidos pelos trabalhadores do setor essencial, reduzindo assim a demanda pelos bens essenciais em 50%. Teremos então um choque de demanda negativo no setor essencial, que fará com que a renda dos trabalhadores desse setor se reduza em 50%. Em suma, no cenário “laissez faire” no qual o governo fica sentado olhando a crise e não faz nada, temos uma contração de 100% da renda do setor não essencial e de 50% da renda do setor essencial, uma queda de 75% da renda da economia no período de duração das medidas de DS. 

Agora consideremos que o governo introduza um programa de garantia de renda dos trabalhadores do setor não essencial, se dispondo a arcar com 100% da renda desses trabalhadores. Nesse caso, os trabalhadores do setor não essencial poderão manter inalterada a sua demanda por bens produzidos no setor essencial, anulando assim o choque de demanda. A produção do setor essencial será mantida intacta, de forma que a queda da produção ficará restrita ao setor não essencial. A queda da produção dessa economia hipotética durante a duração das medidas de DS será de “apenas” 50%, valor muito inferior ao que ocorreria no cenário de não intervenção do governo. Isso porque, embora o governo não possa fazer nada para conter o choque de oferta, ele tem os instrumentos necessários para anular o choque de demanda.

Como o governo financia o aumento de gastos para implementar o programa de garantia de renda? A resposta é simples, com a venda de títulos públicos aos trabalhadores dos setores essencial e não essencial, que agora são forçados – como decorrência das medidas de DS – a poupar 50% da sua renda, coisa que não fariam caso as medidas de DS não estivessem em vigor. A poupança do setor privado terá aumentado na mesma magnitude na qual o setor público reduziu a sua poupança. A poupança líquida da economia continuará sendo igual zero como era antes da pandemia de coronavirus. Como na economia hipotética de Samuel Pessoa não há capital, então também não há investimento de onde concluímos logicamente que a taxa de juros antes e durante a pandemia é igual a zero (obs: no modelo de Samuel Pessoa a taxa de juros é determinada pela interação entre poupança e investimento).

Observe caro leitor que no exemplo utilizado por Samuel Pessoa o custo econômico da adoção do programa de garantia de renda do setor não essencial foi igual a zero. Isso mesmo, zero!!!!. Isso porque a riqueza líquida da sociedade não foi alterada: o aumento do endividamento do setor público foi a contrapartida necessária do aumento da riqueza do setor privado. A sociedade como um todo está tão rica (ou tão pobre) depois da pandemia como estava antes da pandemia.

Até aqui seguimos rigorosamente as implicações lógicas das premissas adotadas por Samuel Pessoa. No entanto, na parte final do seu artigo Samuel Pessoa afirma que garantir 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial é desnecessário e (sic) muito caro em termos do aumento do endividamento do setor público. Ele sugere que o governo só precisa garantir 50% da renda dos trabalhadores do setor não essencial, o que já seria suficiente para manter a demanda dos produtos do setor essencial.

Qual seria o ganho dessa medida para a sociedade como um todo? Para Pessoa, a vantagem dessa medida é que governo precisaria se endividar menos; mas o que ele desconsidera é que ao fazer isso a poupança forçada seria reduzida na mesma magnitude da redução da despoupança do setor público; de forma que o ganho para a sociedade dessa medida seria igual a zero. Se o custo econômico do programa de manutenção de 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial é igual a zero porque razão o governo deveria cobrir apenas 50% da renda? Notem ainda que, nas condições supostas por Pessoa, os trabalhadores do setor essencial teriam 100% da sua renda tanto no caso em que o governo cobre 100% da renda do setor não essencial, como no caso em que cobre apenas 50% da renda dos trabalhadores desse setor. A diferença entre o primeiro caso e o ultimo é que a distribuição de renda e de riqueza entre os trabalhadores de ambos os setores não se altera no primeiro caso; mas sofre uma alteração profunda no segundo caso. Isso porque os trabalhadores do setor essencial terão um aumento na sua riqueza líquida (armazenada na forma de títulos públicos), mas a riqueza dos trabalhadores do setor não essencial não irá aumentar, pois eles terão uma queda de 50% na sua renda. Em suma, a argumentação de Pessoa de que o governo não precisa garantir 100% da renda dos trabalhadores do setor não essencial não se deduz logicamente de suas premissas.

Mas a falta de consistência entre premissas e conclusões não para ai. No final do artigo Pessoa afirma que o governo deveria reduzir os salários dos servidores públicos para (sic) reduzir o ritmo de crescimento da dívida do governo. Ora, no exemplo de Pessoa a taxa de juros é igual a zero, logo o custo do crescimento da dívida é, por definição, igual a zero. Além disso, Pessoa esquece – e é aqui que temos o grande cochilo lógico – que parte significativa dos servidores públicos da União, Estados e Municípios trabalham no setor essencial: estamos falando de médicos, enfermeiros, assistentes sociais, policiais, soldados, cientistas, pesquisadores da área de infectologia; ou seja, o pessoal que está na linha de frente do combate ao coronavirus Logo, a proposta de reduzir os salários dos funcionários públicos é mexer na renda do setor essencial, a qual ele assumiu no início de sua argumentação que não seria afetada por essas medidas. Ao reduzir a renda de uma parte dos trabalhadores do setor essencial, o governo irá ampliar, ao invés de reduzir, a contração do nível de produção da economia como um todo. 

Em suma não há justificativa de ordem econômica para a redução dos salários dos servidores públicos. Creio que a sanha de Pessoa e outros economistas do mercado financeiro contra os servidores públicos é de natureza estritamente ideológica. É necessário criar uma narrativa de que os servidores públicos são uma casta privilegiada, para desviar o foco do debate público sobre medidas de reforma tributária como, por exemplo, a cobrança de imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos, a criação do Imposto sobre grandes fortunas e o aumento do IPTU e do ITR. O discurso de ódio aos servidores públicos é a grande “arma de distração de massas” no debate econômico brasileiro.